terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

O BARCO MÁGICO QUE RODOPIA

Jamais devemos perder a fé – era o que Pedro, o ruminoso dizia toda vez que um bêbado descia cambaleando a rua do mercado. Era num daqueles velhos galpões abandonados que ele reunia seu pequeno rebanho de seguidores e curiosos, mesmo embaixo de chuva, mesmo nas noites mais frias do ano, lá estava Pedro, com seu cajado e seu manto branco encardido e sua pele esfacelada, derretida, pregando a fé nos assuntos divinos e o desprendimento das questões materiais.
Pedro era um mistério, até mesmo para a gente idosa que passara anos de suas vidas apoiados nos portões enferrujados de suas casas, fitando o cais a espera do navio mágico que rodopia ou talvez, apenas aguardando o carteiro com um telegrama ou conta para pagar.
Pedro tinha chegado pouco depois de termos ancorado naquele fim de mundo, passávamos por ali de quatro em quatro anos, era um porto pequeno e muito antigo, geralmente usado nas operações de venda e compra de mercadorias ilegais pelos ratos infiltrados no governo.
A vila por si só era um abandono. Suas ruas tinham cheiro de mofo e seus habitantes pareciam sempre cansados e entediados. Exceto para aqueles que seguiam Pedro, nada parecia lhes dar ânimo, a menos que você tocasse no assunto do barco.
A lenda do barco mágico que rodopia era tão antiga na vila, que os mais velhos lembravam remotamente de ter ouvido algo a respeito quando ainda eram muito jovens, ninguém ao certo sabia quando tinha começado, mas havia, certamente, muita gente que acreditava na lenda do barco mágico que viria resgatar os lúcidos, cujos cérebros ainda não tinham sido completamente tingidos pela maresia. Era uma estória maluca, mas quem ali naquele meio tinha algum tipo de sanidade comprovada?
Ancoramos numa quarta-feira de abril e lá ficamos até a metade de maio, foi uma época de muita chuva, vários alagamentos na parte mais baixa da vila, pessoas que perderam suas casas e seus bens dormiam na porta da prefeitura.
Isso certamente fez aumentar o rebanho de Pedro, o ruminoso. Pedro condenava abertamente a lenda do barco mágico, atribuindo tal mentira a algum espírito demoníaco que habitara aquele lugar. Seus seguidores viravam as costas para a imensidão azul que freneticamente agitava e parecia rugir, lá do alto.
Estávamos em cima de uma pilha de caixas que tínhamos acabado de levar para alto de uma colina, um lugar suficientemente seguro dos alagamentos. Podíamos ouvir Pedro vociferando para a multidão embaixo da pesada chuva que desabava. Primeiro suas palavras gritadas e logo depois os aplausos daquela gente.
Foi bem nessa hora que o vimos surgir como que rompendo uma enorme muralha de águas turvas, tão escuras quanto a noite que caíra, a primeira vista, aquela engenharia estranha e exageradamente colorida, cujas luzes, vermelhas e laranjas piscavam e giravam como pássaros alvoroçados não se parecia com nada que remotamente lembrasse uma embarcação.
Esfregamos os olhos, Pedro e seu rebanho não tinham visto ainda, enquanto algumas pessoas lá embaixo pulavam no mar e nadavam em direção ao barco – Jamais devemos perder a fé – Pedro dizia – Aqueles que crêem serão como a relva nos campos do Senhor – nisso boa parte da população da vila já tinha pulado no mar revolto, era difícil acreditar que alguém pudesse sair vivo daquelas águas. Saltei de cima das caixas e fiz um percurso difícil até a beira do cais, descendo ruazinhas escorregadias e passando em frente ao comício de Pedro pude ouvi-lo mais claramente – Aqueles que crêem serão como baldes recolhendo a enxurrada divina – alguns moradores me acompanhavam na descida e quando meus pés tocaram a plataforma de madeira, aquela imensa embarcação colorida cujas gargalhadas pareciam saídas da boca de peixes gigantes, afastava-se lentamente do porto.
Despertei na manhã seguinte, sentindo dores terríveis pelo corpo, estava nas escadas em espiral da torre de observação. O mar tinha avançado furioso para cima da vila naquela noite, meus colegas vieram ao meu encontro, pareciam não acreditar que eu estivesse vivo, nenhum deles tinha visto rastro de barco algum, um terço da população tinha desaparecido, equipes de resgate fizeram incessantes buscas pelo mar, mas nenhum corpo foi encontrado – Estão no inferno – Pedro vociferava.
Na semana seguinte consertamos os estragos que o maremoto fizera no nosso navio e partimos para outros portos.
Pedro, o ruminoso e seu pequeno rebanho eram os únicos que acenavam – Pobres diabos.