quinta-feira, 16 de junho de 2011

MINGAU E O JUIZO FINAL

A cidade ferve e eu acho que não tenho mais nada a ver com ela, por isso fiz minha mala e estou dando o fora essa tarde antes que as coisas peguem fogo. Segundo as previsões a temperatura deve chegar aos 34º lá pelas 3 da tarde e os peixes contaminados irão saltar de dentro dos rios direto para as bocas das pessoas e será como o dia do juízo final. Pelo menos foi o que contaram no jornal da manhã, acordar mais cedo tem suas vantagens, ou será que tudo não passa duma grande mentira? Dizem que os peixes e uns crustáceos mais resistentes às mudanças do tempo andam se alimentando de restos de baterias de celular e de pilhas velhas que são descartadas nos leitos dos rios e isso tem feito com que essas espécies inofensivas desenvolvam um tipo de organismo de mercúrio e níquel misturados. Outro dia mesmo saiu uma matéria num jornal sobre uns pescadores que usavam pequenas piavas para acender os faroletes e que os índios ianomâmis usavam tilapias para recarregar seus aparelhos de telefone celular, inclusive na matéria havia uma entrevista com um índio que reclamava, usando palavras nem um pouco amistosas, sobre a alta conta de telefone que andavam recebendo na aldeia, segundo ele, tudo por culpa de sua mulher, uma rechonchuda e sorridente ianomâmi deitada numa rede numa longa conversa interurbana.
O ônibus sai as 2:15 da tarde e lá pelas 4 devo estar numa distancia mais ou menos segura. Comprei a última passagem num ônibus fretado até Fama, no sul de Minas, de lá pego um barco e sigo até uma pequena ilha, na verdade um banco de areia no meio da represa onde devo passar os próximos dias, até as coisas se acertarem por aqui. Levo uma barraca, saco de dormir e comida para três meses, aprox. É ônibus de excursão escolar e só me deixaram ir junto porque um dos alunos cancelou a viagem na última hora. Espero conhecer admiráveis menininhas de 16 e 17 anos, mas por precaução arrumei um fone de ouvido dos grandes. Espero que tenha banheiro dentro do ônibus e espero que ninguém se incomode se eu fumar no banheiro, é que sempre fico meio apreensivo em viagens, principalmente de ônibus, e principalmente por estradinhas de terra, pois é, esqueci de contar, é uma viagem de estudo pelo interior do país, por vias secundárias e terciárias, onde o sul de minas será apenas uma breve passagem, visto que pretendem finalizar o percurso em Erexim, no Piauí e de lá parece que vão seguir de avião até a Disney ou alguma coisa parecida. Não tive como escolher coisa melhor, esse foi o único ônibus que sobrou da frota inteira incendiada na semana passada. Só lá na rua foram cinco, e uns moleques logo correram com uns espetos improvisados com batata-doce e salsicha, sequei dois pares de meias numa dessas imensas fogueiras. E dormi de pé aquecido pelos ataques extremistas. Quando acordei havia cinco esqueletos de ônibus como pedaços de carvão pela rua e crianças de rosto sujo brincando de excursão no que sobrou daquilo. O bom de ser criança é isso, o fim do mundo sempre parece como um parque divertido. Quando crescemos todos os parques se parecem com o fim do mundo.
E eu tive que sintonizar o rádio enquanto espero a hora de partir rumo à rodoviária, e parece que dois prédios desabaram no centro da cidade e por sorte não havia ninguém dentro deles, isso foi ao meio-dia e todos estavam na fila do cachorro-quente agora as equipes de reportagem reviram os escombros na esperança de encontrar alguma possível vítima que possa ser entrevistada, antes que uma das reportagens fosse para o ar, pegaram um menino que circulava pelos arredores e pediram para que ele esfregasse um pouco de fuligem no rosto e quando a matéria enfim entrou ao vivo tudo não passava duma entrevista arranjada com um tom milagroso de sobrevivência humana e vontade lá de cima, e ainda perguntaram para ele o que achava de tudo aquilo e ele olhou para a câmera e deu um arroto, pois esqueceram que além do cachorro-quente era dia de promoção da coca-cola e tentaram cortar a última parte, mas era tarde e já tinha ido para o ar assim mesmo e muitas pessoas começaram a rir da inocência disso no meio daquilo tudo quando um repórter retirando um tijolo de cima duma pilha enfiou a cabeça num buraco perguntando se tinha alguém ali.
1:14, melhor eu dar o fora agora, é quase uma hora de caminhada, ônibus não tem, trem também não e táxi só para com mandato judicial. Apanho minhas coisas e as empilho às costas, deixo uma fresta de janela aberta para o gato e comida para 20 semanas, eu volto eu falo, mas ele nem liga, se espreguiça debaixo do sol num canto perto do telhado e eu tenho um pouco de inveja dele e da sua indiferença e eu sei que tento a todo custo ser assim, mas o máximo que já consegui foi arrepiar o cabelo e enfiar um alfinete na orelha, depois me cansei de Sex Pistols e quando descobri que os filósofos todos se contradiziam não soube por anos onde enfiar a cara para tentar esconde-la disso que todos ou quase todos, chamam de mundo. Melhor dar o fora.
Tchau Mingau. Fica bem.
Prometo que volto.