terça-feira, 9 de março de 2010

DESERTOR

Pensei que eu jamais quisesse esconder o desprezo que sentia por aquelas pessoas e pela maneira como viviam, como se deixavam viver – paradas dentro de seus carros ou espremidas dentro de ônibus ou em vagões de trens que mais pareciam latas de sardinha, encarando com um resto de sobriedade estúpida a árdua batalha da vida, soldados prontos para a morte à qualquer preço, metidos numa guerra inútil onde invariavelmente acabariam mortos por um punhado de dinheiro, um pedaço de um sonho imbecil qualquer como um carro do ano, um apartamento super-seguro, remédios e microcomputadores numa fortaleza de plástico boiando no meio de algum oceano. Até então éramos todos perdidos no labirinto das drogas, mas exceto por dois ou três idiotas cuja fraqueza era maior do que a vontade de gritar, todos nós tínhamos consciência de que a imensa dor que carregávamos nas costas como uma desgraça eterna era fruto da capacidade de percepção que naturalmente é dada apenas a certos indivíduos capazes de antever o momento exato em que deixavam de lesar teus cérebros e passavam a foder teus rabos, como se o corpo, essa carcaça impune, não passasse de mero objeto passível de troca, uma simples peça da inquebrantável massa trabalhadora, essa mesma massa pela qual eu começara a sentir um profundo desprezo que se traduzia numa ânsia de aniquilá-la ao menor movimento, ao mais sutil vacilo. E eu sabia que estava pronto. Uma guerra particular detonara como uma bomba dentro da minha cabeça, liberando milhares de endorfinas venenosas de modo que minha maior ocupação e alento era embrenhar-me pelas majestosas construções de concreto despejando doses cavalares de cianureto nos reservatórios de água do mundo. Na esperança de que a última particula dessa massa disforme enfim tombasse.