- Manhêêêêêêêê... conta uma estória?!
- Que estória você quer que eu conte?
- Sei lá, inventa uma.
Ana Lara pensou por um instante e olhando para os lados, para toda aquela decoração infantil do quarto de sua filha de três anos, não encontrou nada que inspirasse uma nova estória, exceto é claro, por Agnaldo, o gato persa da família. Então a estória teve início:
- Era uma vez um peixinho dourado.
- Um peixinho dourado?
- É, um peixinho dourado.
- Como assim um peixinho dourado?
- Cala essa boca e escuta essa maldita estória.
- Ta bom. Ta bom.
- Era uma vez a porra de um peixinho dourado que vivia entediado dentro dum aquário estúpido bem ao lado de uma televisão que transmitia programas estúpidos que eram digeridos por uma velhota igualmente estúpida.
- Só tem gente estúpida nessa estória?
- Só, menos o peixinho dourado, porque o peixinho dourado podia prever o futuro, embora ninguém soubesse, nem mesmo suspeitasse disso. Todos os dias a velhota colocava comida na água do aquário e voltava para sua poltrona de feltro laranja, ajeitando seus óculos para poder enxergar melhor o enlatado do momento. E o pobre peixinho ficava ali, abrindo e fechando a boca, sozinho e entediado como se fosse Kurt Cobain.
- Kurt Cobain?
- Isso mesmo.
- Manhêêêêêêêêêê...
- Quié?
- Rape me?
- Ah, cala essa boca e deixa eu terminar a merda da estória do peixe.
- Ta bom. Ta bom.
- Então um belo dia de novembro, o peixinho teve uma idéia, ele iria foder com a velhota porque estava de saco cheio daquela vidinha medíocre que levava dentro daquele aquário antiquado. Quando a velha foi jogar a comida na água, ele deu um salto e abocanhou três de seus dedos nos dentes afiados que possuía, a velha pulou para trás num grito, tentando estancar o sangue que escorria e pingava por todo o tapete verde de veludo. Saiu gritando pelo seu marido que chegou logo depois com uma cartucheira carregada, nisso o peixinho dourada já tinha devorado os três dedos que conseguira apanhar, ouviu-se o barulho de tiros e de uma hora para outra toda a água do aquário inundou a sala dos velhos e o peixinho saiu rolando no meio daquela turbulência. E claro que o peixinho nunca mais foi encontrado e isso é o que deixa a estória ainda mais intrigante, pois sendo um peixe capaz de prever o futuro, as coisas que aconteceram a seguir merecem uma estória à parte.
ESTÓRIA À PARTE
No dia dezesseis de novembro de dois mil e tantos, dois homens subiram pelo elevador do prédio para consertar um piso que inundara com o vazamento da água de um aquário, porém, no momento em que limpavam o excesso de água que por ali se infiltrara, acidentalmente um deles deixou respingar cola quente nas costas do gato da casa, esse deu um salto gigantesco, vindo cair com as unhas eriçadas bem nas costas da velha que fazia tricô, com o susto, sabe-se lá como, a velhota enfiou uma das agulhas numa tomada de 220 volts, como estava também com os pés enfiados numa bacia de água morna, o choque estremeceu a velha e logo os dois homens tentaram ajuda-la, mas foram igualmente eletrocutados e morreram todos naquela mesma tarde naquela mesma sala. O panela que cozinhava feijão explodiu e o incêndio que se seguiu a isso se alastrou por todo o prédio, equipes do corpo de bombeiros foram chamadas, a fumaça subia tão alto e repentinamente que todos os helicópteros que sobrevoavam a cidade ficaram perdidos em questão de segundos, num deles estava o presidente, num outro o Santo Papa que visitava essas terras à fim de angariar novos clientes, os dois helicópteros chocaram-se em meio à fumaça e caíram como moscas mortas no chão, acertando em cheio um dos carros da comitiva do presidente norte-americano e justamente o carro onde ele estava. Mas foi um acidente envolvendo um dos carros do corpo de bombeiros e uma moto onde seguia o presidente da confederação nacional de futebol, vitimando esse último que encheu de comoção e paralisou todo o país durante duas semanas inteiras. Foi decretado luto oficial e tudo.
- Que estória triste mamãe.
- Mas essa estória não é tão triste assim, todas as outras pessoas do mundo viveram suas vidas felizes para sempre.
- E o que aconteceu com o gato?
- Esse é outro mistério da estória.
Ana Lara olhou para o canto, perto da porta, o gato espreguiçava-se distraidamente, encarou as duas por um instante, deu meia volta e foi para a janela onde contemplou por um tempo os escombros do prédio vizinho onde vivera muito tempo, recordando também um saboroso peixinho saltitante que inexplicavelmente saltara para dentro da sua boca. E lá no quarto agora era contada outra estória.