O CANTO





















Que todos os pássaros partam
para longe de mim
junto com todos esses barcos
que navegam com suas velas coloridas
seus sorrisos de alegria
suas canções














































para Bárbara e
para Jéssica.





Uma chuvosa tarde de domingo. Lembro que eu tentava me proteger da chuva, debaixo de uma marquise, em frente a uma lanchonete recém fechada. Um ônibus passou lentamente pela avenida triste, pensava nessa menina, do tempo em que havíamos ficado juntos, de todas as loucas coisas que fizemos nos lugares mais inóspitos possíveis. Eu era cinco anos mais velho do que ela e vivia escrevendo coisas simples e adolescentes para que ela guardasse em meio aos livros. Eu só pensava em tirar proveito da situação e quando voltei atrás e tentei pedir-lhe desculpas ela foi embora definitivamente.

UMA CARTA

Você é tudo o que eu espero
Pena que já não te quero
Você me fez tudo o que eu não te faço
Pena que já não te acho
Você me deu doces, flores, beijos
Pena que já não te vejo

Você me disse coisas bonitas todo tempo
Pena que já não tenho tempo
Pra você

Você me levantou quando eu caí
Pena, só agora eu percebi
Me esquentou nas noites frias
Me protegeu de chuvas e temporais
Mas eu nunca reconheci nada disso
Nunca sequer te agradeci
Nunca me importei com as coisas que você fazia
As palavras que você dizia
Palavras que hoje se repetem como um eco interminável dentro da minha cabeça
E talvez eu vire a noite
Talvez nem amanheça




7

Ou me pegue de novo sozinho, no escuro de uma noite fria
Bem no meio da chuva
Do mesmo jeito que você me encontrou

E para onde quer que eu vá carrego comigo
Essas lembranças todas que o tempo traz
Pena que só agora eu percebi
A falta que você me faz.






























08

Uma casa de madeira no meio de um mato infestado de pernilongos. Eu, minha tia e mais três amigos. Levamos uma vitrola portátil, antiga e ficamos ouvindo velhos discos de blues no chão da sala, até que fomos procurar os “lírios do campo”, mas por causa dos pernilongos acabei desistindo e fiquei da porta, olhando para os meus amigos lá fora. Acho que foi em janeiro ou fevereiro de 99.

ODE À PREGUIÇA

To à toa na jangada que desliza
Num deslize arrepiante – preguiçoso
Por parar em cada coisa vou cantando
Num bocejo que é quase suspirando

Longe, me afasto, me esqueço
Largo o corpo que tem sede de silêncio
No vai-e-vem da rede que se arrasta
Me canso e já me deixo que é o que basta

Sem eira nem beira na esteira da vida
Na distância exata do vicio das coisas
O que tenho para dividir é o meu abraço
E o que faço por vontade é não querer mais nada

A estrada é tão comprida e eu tenho sono
Deito e noto o céu, como ele me olha
E durmo na tranqüilidade de estar sendo observado
E peço a Deus para não ser mais acordado

Antes das dez horas da manhã.








09
Havia um palco na praça de alimentação do andar térreo de uma galeria onde eu passava às vezes aos domingos e nas noites de sexta para ver quem estava tocando/cantando. Fazia um pouco de frio e chovia também, o palco vazio agora, e eu anotava palavras desconexas em um guardanapo, lembranças de uma amiga que morava em uma cidade distante.

IMAGINANDO ROMANCE NO DIA DOS MORTOS (UMA CARTA PARA GISELE)

Estou aprendendo a voar e meus vôos ainda são baixos
Mesmo assim eu te encontro em nuvens de temporais na primavera
Estou aprendendo a sonhar, mas os meus sonhos ainda são breves
Como um curta-metragem de amores distantes e perdidos
A garçonete voltou mais uma vez para a cozinha
Foi encher um outro copo da bebida que eu pedi
Enquanto a sua foto me pegou pelo pescoço e me deixou tão alto
Que me fez bater com a cabeça na lâmpada fluorescente do teto que caiu
E se partiu em mil pedaços pelo corredor
A mulher da faxina veio com uma vassoura juntar os cacos
Do meu coração despedaçado, desperdiçado, cantando
Ela assobia uma musica como se fosse valsa
E o casal da mesa da frente fazendo de conta que vive um enredo de amor
Estou sozinho mais uma vez
Estou sozinho de vez
Fugindo da chuva
Que encharca a minha alma molhada de vinho e cerveja barata
Todo mundo fala ao mesmo tempo
Todo mundo fala tanta coisa sem sentido
Todo mundo joga, conversa fora
Eu queria ir embora
Atirar meu coração ao mato
E os meus sapatos numa lata de lixo
Dançar descalço na chuva
Despido de qualquer sentimento




10

A garçonete enfim me trouxe outro copo cheio
Combustível para o veiculo
Remexi os meus bolsos procurando pela foto
E a sua foto me fala, me cala, por um minuto, uma hora
A garçonete olha como quem pede de volta sua caneta,
Seu guardanapo
Sou um intruso, sou um estranho, sozinho
Entre trinta e nove mesas com trinta e nove casais fingindo histórias de amor
E a mulher da faxina parou de assobiar
Recolheu todos os cacos do meu coração vacilante
E sumiu mais uma vez por entre os corredores escuros e estreitos
Dessa galeria úmida e vazia
Carente de amores impossíveis.

























11

Na sala de recepção de um consultório dentário, com aquele monte de revistas antigas de fofoca e todo o tipo de informação inútil, folheei uma ou duas e acabei encontrando uma foto da Fernanda Vogel, tinha uma matéria também, mas eu não li, a televisão estava ligada no canto da sala, transmitindo noticias policiais sobre morte e assalto e a recepcionista de cabeça baixa aparentemente lixando as unhas.

DE UM TREM

Tenho a espera do perigo nos meus traços
O vazio do teu silencio em meu abraço
Tive a hora que acaba de passar
Num lamento que ela nunca irá voltar

Vou ter sonhos como aqueles que perdi
Na esperança de um dia desistir
Vou ter o gosto imaginado da tua boca
Numa esperança impossível de tão pouca

E vou continuar a ter pesadelos
Que me pintam de rugas, que me arrancam cabelos
Pois também tenho a insensatez da falsidade
De esconder, de ocultar o que é saudade.















12

Longa noite de insônia, virando de um lado para o outro na cama, levantando de tempos em tempos para olhar pela janela, ouvindo o barulho dos trens da madrugada, latidos de cachorro e pneus de carro deslizando na chuva. Revirando bolsos de calças, procurando por dinheiro, remédio. Silencio. Grandes olhos castanhos refletidos no espelho rachado.

NOITES INSÓLITAS

A lua que te espia te condena
Ao ócio que te mata que te pena
A alma que não voa aprisionada
Ao corpo que acompanha a madrugada
No escuro do teu quarto um gemido
De um sonho que despenca falecido
A porta que não abre ao sol ausente
De um brilho que apagou-se de repente
As grades da janela à parede
O teto que desaba à sua sede
A noite aqui presente te ignora
Sepulta e esquece quem te chora
Ao lamento da ausência foi rompido
O abraço que tinha te esquecido
A lua que te espia te condena
Ao ócio que te mata que te pena.














13
Eu tinha uns sete anos e ia com os meus pais nessa fazenda onde plantavam cana, laranja e acho que uva também. Havia uma casa estranha, toda pintada de branco e que permanecia sempre fechada, eu ficava olhando pelo buraco da fechadura aqueles móveis todos cobertos por lençóis brancos e imaginando histórias sobre fantasmas. Tinha um silêncio triste também.

GIRASSÓIS

Mil girassóis
Entre nós
E nenhum vento vem
Na nossa direção

Nenhum pássaro
Passa a cantar
Nenhum pássaro
Nunca mais cantou
Aqui nesse lugar

Nenhuma folha no outono cai
Das arvores paraplégicas
Nenhum som
Nenhuma canção

Nenhuma vidraça para ser quebrada
Nenhuma campainha para ser tocada
Nenhuma casa
Todas as portas fechadas
Nada

Roscas emboloradas
Postas na mesa
Para o café da manhã
Entre mil girassóis.




14

Com os sapatos encharcados e os cadernos da escola molhados debaixo do braço, corri para um ponto de ônibus e esperei até que a chuva ficasse mais fraca, depois corri para debaixo de uma árvore e estava a uns cinco minutos de casa, sexta-feira de tarde, havia matado as duas ultimas aulas, física e matemática, pensando em chegar logo em casa, junho de 94.

LINHAS RETAS

Eu fiz um mapa da minha vida
Por já estar cansado de tudo
E essas linhas retas traçadas
Rasguei

E lá fora a chuva fria caía, em mim

Eu cruzei um oceano
Chorei enquanto amanhecia o dia
Eu já estava farto
De ouvir a mesma história

E lá fora a chuva fria caía, por mim

Vi morrer um arco-íris
Apagar-se uma estrela
O que senti foi pena
De quase tudo o que vi

E lá fora a chuva fria caía, de mim.










15
Eu havia comprado quatro discos de vinil perto da minha casa e voltei eufórico com eles debaixo do braço, tesouros recém descobertos nas minhas peregrinações pelos sebos da cidade. Também foi na mesma época em que eu me liguei em uma menina que tocava algumas coisas com um violão de doze cordas. Sobre juventude, a perda da juventude, tragédia, etc.

PARA CARINE

Hoje a noite arrasta o tédio triste
Do sol que deita ao sono dos poetas
Agora é hora de chorar teu nome
Agora é hora de chorar-te a vida

O vento, o tempo parou por um instante
Instante longo que gira interminável
Queria ter a pressa em que me esqueço
Me esqueço só num choro inigualável

O dia suspira teus sonhos de saudade
A vida passa agora já não dança
Eu canto baixo para ser escutado
Por anjos vindos lá do meu passado

Hoje a porta fecha tão pesada
Hoje o vermelho brilha acinzentado
Talvez eu possa me lembrar sorrindo
Daquilo tudo o que eu me esqueço agora

Se tua ausência é coisa que me impede
De não pedir a Deus coisa nenhuma
Peço num grito assim desesperado
Que eu te encontre num sonho por ventura

Vou deslizar por entre nove nuvens




16

Desde teu céu de notas infinitas
Vou me lembrar a cada novo dia
Que os nossos passos são pro seu abraço.



































17

Tenho dois primos que passaram a infância toda em um apartamento minúsculo dentro de um conjunto interminável de prédios idênticos, todos com cinco andares e sem elevador. Era como estar dentro de uma gaiola, eu acho, e você olhava para um lado e dava de cara com a vizinha cheia de bob´s na cabeça, olhava para o outro lado e só via roupas estendidas no varal, parecia Tókio ou Berlim Oriental. Extremamente deprimente.

APEGO

A janela é muito alta
Eu sinto a tua falta
As luzes são escuras
Apagam-se nas ruas
A noite me ensina
Nada mais me anima
O tédio me atormenta
E me alimenta
Me alimenta
Me alimenta
O tédio alimenta a minha poesia
Sustenta a minha solidão
Aumenta a minha agonia
Enquanto isso
Por debaixo da escada
A noite em ensina
Nada mais me anima
Nada.











18

No caminho da minha casa para a escola tinha uma viela que a gente chamava de “valo”, era um beco cheio de mato, ratos e bueiros com as tampas abertas, eu e mais dois amigos frequentemente íamos até lá e enchíamos latas de refrigerante com Contini, Martini e coisas desse tipo, o grandão não falava nada, só ficava rindo com aqueles olhos rasos, o outro era mais agitado e não parava nunca, no começo eu achava aquilo o máximo, sair de sintonia e tentar imaginar como Kurt Cobain se sentia quando deu um tiro na cabeça.

POEMA INEBRIADO

Gosto da mente turva
Confusa
Como as águas de um lago
Por onde passa a tempestade
Gosto de perder os sentidos
Gosto de sair dos trilhos
Como um trem desgovernado
À procura do abismo
Gosto de matar o juízo
Gosto de inventar um sorriso
Gosto da alegria – improviso
Tristeza com mil girassóis
Gosto de estar à deriva
De coisas nem mortas nem vivas
Que se estendem
Pro céu despencar
Gosto que o vento me leve
Que o tempo me carregue
Sempre, para um outro lugar
Gosto da lua com as estrelas
Pois sei que são passageiras
Gosto das frases de poemas
Pois sempre acabam
Encontram seu fim.




19

Conheci uma menina baixinha com um rosto de anjo e uma voz insuportável (infelizmente) ela queria sair pelo mundo pregando o evangelho assim que se formasse em letras, nessa época eu me ligava em zen-budismo e para mim ela não passava de uma crente como todas as outras, mas tinha o cabelo curto, lindo e no verão ia para a escola de chinelo, quando as aulas já estavam terminado.

PÉ DE CHINELO

Pé de Chinelo
Do jeito que eu te quero
Roupa amassada
Minha namorada
Vida sem rumo
Enrola que eu fumo

Pé de Chinelo
Descalço te espero
Rosa, é flor que já nasceu
Prosa, fala que sou eu
Casa, vem morar comigo
Brasa, queima que eu não ligo

Para ver seu rosto, fujo
O meu eu mesmo sujo
Saio, invento, construo mil castelos
E te imagino dentro
Minha princesa
Pé de Chinelo.









20
O mar me deprime, praias me deprimem. Acho que se existir o inferno ele deve ser alguma coisa parecida com o mar e a areia escura da praia em um dia cinza de inverno com pés de bananeira e aranhas caranguejeiras no lugar de conchas.

PRAIA DESERTA

A praia está deserta
As gaivotas já morreram
O sol nem bem nasceu
Começou a se apagar

As crianças não voltaram
Não veio mais ninguém
O som do mar nas pedras
Também não existe mais

A areia está escura
Copiando o cinza céu
Meu amor foi-se embora
Antes mesmo d´eu conhece-lo

O dia nem bem começou
Já está por terminar
O mar pálido, parado
Nada de bonito
Tudo é tão real.











21
A minha antiga casa vazia, a porta dos fundos fechada. O extenso corredor morto, frio e cinza, iluminado pela luz que entrava da enorme e antiga janela da sala sem cortina, sem móveis e sem quadros, paredes nuas. Uma bola de tênis esquecida na calha, clima de despedida e tristeza nostálgica.

SONHOS DE PORCELANA

Meus sonhos estão guardados
Dentro de uma caixa de sapatos
Num canto do quarto dos fundos
Onde ninguém mora mais

Há tantos cacos espalhados pelo chão
Há tantas páginas picadas
Tantas flores despedaçadas
E os meus sonhos guardados
Em vão.





















22
No estacionamento de um shopping center com uma menina que trabalhava em uma pastelaria, ela estava saindo do serviço, eu também, vestia um avental surrado, mãos sujas de gesso, do outro lado um cara gordo dentro de um carro nos olhando de tempos em tempos, estávamos completamente lívidos e sem assunto.

ENCONTRO

O sorriso que carrego nos meus passos
Ao encontro em que me encanto c´a sua graça
Tingi-me a noite que me abraça
Em suspiros e sussurros que ela passa

E se ela passa eu me encanto mais ainda
E não durmo, e não falo, que só sonho
Doce sonho de um leve desespero
Finda o dia a esperar o dia inteiro

E lá se vão sonhos que o vento me carrega
E os sorrisos dos meus passos também vão
Um palco que desaba e me esquece
Descortina-se que o dia já amanhece

E ao silêncio de um encontro quase morto
Numa história em que nada aconteceu
Retorno à quietude da minha conformidade
Ao desconforto de quem morre e não viveu.











23
No caminho até a casa de um amigo (da época do quartel), grupos de jovens reunidos em pequenos espaços entre dezenas de prédios de um conjunto habitacional, pessoas fumando crack e maconha, todo o lugar com uma aparência horrível, decadente, ruas esquecidas e parcas luzes amarelas denunciando toneladas de lixo acumulado.

PERCEPÇÃO

Na parede o prego
No prédio, delírio
Nos olhos, colírio
Fumaça no ar

No som, o silêncio
Se foi, o poeta
E a porta aberta
O vento fechou

Na rua, amargura
Corpo, fechadura
Nada, nada aqui
Completa o verão

No sol um sorriso
Alegria, improviso
Aviso escrito:
O amor se acabou.











24
Tinha uma menina que usava dread locks na escola e na época isso não era uma coisa muito comum, vivia sorrindo e conversava com todo mundo, seus olhos brilhavam e eu ficava do outro lado da quadra na hora do intervalo, perto de um muro alto, com mais quatro ou cinco amigos bebendo vinho até que os meus olhos brilhassem também. Nunca fomos apresentados.

SORRIR

Eu gostaria de sorrir das suas piadas
Ainda que fossem mal contadas
Gostaria de poder inventar
Histórias divertidas para te contar
Mas às vezes o que eu quero
É muito mais do que eu espero
E do que eu sei que ainda posso conseguir
Tentar mudar, correr, fugir
Gostaria de esboçar-lhe um sorriso
Ainda que para isso eu nem sei do que é preciso
Chegar correndo e te dizer o que eu quiser
Falar e te ouvir e sentir que me quer.


















25
Tarde de terça, sozinho no meu quarto com um velho dicionário inglês / português tentando traduzir uma música que eu havia gravado em uma fita cassete, o vento fazia a cortina balançar por cima da minha cabeça. Começo a
não gostar muito da letra, desisto de traduzir até o fim.

O SOPRO DO VENTO

Sopra
Sopra vento do inverno
Sopra num sopro interno
Que nunca é tarde
O vento me invade
Sopra
Sopra vendo solitário
Sopra de dentro do armário
Por debaixo da cama
O vento me chama
Que nunca é tarde
O vento me invade
Assola o meu divagar
Nunca mais vou sonhar
Sopra
Sopra vendo do inverno
Sopra teu sopro eterno
Sopra que teu sopro não é silêncio
Sopra teu sopro imenso
Já posso ouvir tua canção
O canto da morte do verão
Sopra
Sopra vento do inverno
Sopra num sopro etéreo
Dentro de mim já não canto
Teu sopro pra mim é espanto
Pra te ouvir eu me calo




26

Do teu assombro não falo
Escuto
Que nunca é tarde
E o vento me invade.


































27
Logo depois do revelion em uma casa de praia, ventava muito, voltei para casa sozinho, uma imensa bola vermelha furada no canto da área, me sentei em um sofá feito de palha trançada, louça suja amontoada na pia, barulho das ondas e fogos de artifício, comecei a folhear uma revista qualquer, Testemunhas de Jeová e essas coisas, com desenhos do paraíso e interpretações de passagens bíblicas.

O ÚLTIMO DIA

Chorei
Por que tinha que chorar
E parti
Pra me esquecer do mar
O sol
Queimava-me até arder
Senti
Que jamais fosse esquecer
Calei
Por que era a hora de calar
Te vi
Naquele mesmo velho lugar
Pensei
Que talvez fosse melhor
Correr
E a dor era maior
Escondi
As lagrimas que escorriam do meu rosto
E o ar
Tinha o mesmo gosto
Do frio
Daquele triste abraço
Ao fim
Que eu era só cansaço
Sorri




28

O meu sorriso era tristeza
Talvez
Fosse a única certeza
E era
Era pura despedida
Saudade
Da história de uma vida.































29

Uma tarde inteira atendendo telefone na oficina vazia, atacado por um sentimento insuportável de angustia, voltei a pé para casa, a banca de jornal fechada, a padaria fechada, a praça deserta. Li uma matéria sobre um remédio abortivo qualquer, demorei para pegar no sono e tive pesadelos com ovelhas carnívoras clonadas.

EPÍLOGO

O vento que me espanta me alimenta
Alimenta-me no escuro, me atormenta
O tormento por que passo percebido
À perceber meu rosto destruído

As coisas, todas elas passam
As pessoas também passam, já não ficam
O que fica é o meu sonho no escuro
Escondido na incerteza do futuro

O futuro já não chega, se arrasta
Da porta e lá de fora grita: basta!
Basta desse sono tão perdido
Tão pequeno que arrancado, desiludido
Não mais sobrevive, não pode viver
Quisera isso tudo nunca fosse acontecer

Mas agora a eternidade é um brilho que se apaga lá pra fora
E lá fora, se sufoca ou se chora
Já não faz a menor diferença
O velório e o enterro da crença
A crença que se teve quando se tinha no que acreditar

Mas o tempo agora gargalha dessa nossa hipocrisia
Dessa nossa ironia
Essa mania triste




30

Que se teve cultivada
Ao logo de uma inacabada estrada
Essa mania que nos temos
De sonhar.


































31
Parado em frente a um alfaiate, bem na esquina da escola, anotando qualquer coisa no caderno dessa menina, tive que sentar para a letra sair legível, ela ficou de pé, simpática, sorrindo. Fiquei sem jeito porque era um poema que eu havia escrito para ela e nem éramos conhecidos, quero dizer, antes desse dia.

AMOR BANDIDO (PARA CIDA)

Vivo de um amor quase platônico
Quase irônico
Por que já não vivo
Quase que
Sobrevivo
Vivo de um amor que me mata
Vivo de um amor clandestino
No exílio
Pirata
Mas vivo desse amor porque quero
Vivo porque um dia eu espero
Espero vê-la voltando
De vez em quando
E mesmo que ela fale que me odeia
Mesmo que ela finja nem me notar
Que chame a policia
Ou que me mande tomar naquele lugar
Aqui eu continuo
Aqui vou continuar
A te amar
Por que o meu amor é vivido
É amor maior
É bandido.








32
Um dia sem graça, uma tarde triste, andando de ônibus pelas ruas cinzas, caóticas e feias do centro da cidade, passando por viadutos esburacados, prédios decadentes com paredes emboloradas, etc.

ANGÚSTIA FRIA

Angústia fria
Corta o vento
Como navalha
Teu beijo é nojento
Corro de você
Olhe para trás
Era teu Diazepam
Agora não sou mais
Agonia louca
Pouca alegria
Pouco sentimento
De novo agonia
Febre sufocante
Vontade de sonhar
Vida angustiante
Paro de vomitar
Angústia fria
Corta o vento
Como navalha
Teu juramento
Corro de você
Olhe para trás
Não sei se vou fazer
Não sei se sou capaz
Agonia louca
Louca alergia
Meu juramento
De novo agonia




33

Febre sufocante
Vontade de vomitar
Vida angustiante
Paro de sonhar.


































34
Cheguei em casa tarde da noite, bêbado, tropeçando nos degraus da escada, caí na cama sem nem tirar os sapatos, o quarto parecia girar e dentro da minha cabeça tocava uma música parecida com a música de uma caixa de jóias daquelas em que uma bailarina em miniatura fica girando, girando, girando.

ELA DANÇAVA UMA VALSA

Algo estranho me entretinha
Olhando ela agora sozinha
Ela dançava uma valsa
Notei que estava descalça
Arrastava-se por todo o salão
Quase tocando-me a mão
De vestido longo, branco, rasgado
Seus olhos me olhavam vidrados
Ela dançava uma valsa
Dançava sozinha e descalça
Estilhaços de garrafa pelo chão
Brilhavam no imenso salão
Seus pés sangravam, ela não percebia
Eu, embebido, alucinado, me perdia
No seu cabelo louco, revirado
Ela dançava engraçado
Mas era uma graça insana
Ela não era humana
Ali sangrando, sorrindo, descalça
Dissipando-se como fumaça
Como dissipasse no chá de lírio
Como um gosto no desgosto
Delírio.








35

Imagens, flash-backs instantâneos e contínuos, um tipo de cinema mudo ou uma exposição de fotografia, mas cada imagem impregnada por um tipo especifico de sentimento ou o sentimento impregnado por uma imagem, não dá pra saber qual dos dois surge primeiro.

TRAUMA

Vejo um espelho no fundo de um corredor
Parece sonho
Parece dor
Vejo uma criança sorrir dos confins
Parece névoa
Parece fim
Vejo uma rosa morta a se descolorir
Parece câncer
Parece partir
Vejo um homem perder da vida a vontade
Parece morte
Parece verdade
Vejo uma escada subindo para o nada
Parece tédio
Parece que acaba
Sinto o frio estremecer minha alma
Parece inverno
Parece trauma
Sinto um abraço de mim se separar
Parece ontem
Parece chorar
Sinto como se sinos estivessem batendo
Parece triste
Parece sofrendo
Sinto o vento trazer nostalgia
Parece cinza
Parece fobia




36

Ouço uma voz que diz: olha!
E dizendo, desaparece
Mas nada vejo,
Esquece.


































37
Uma batida de carro sem maiores conseqüências perto de casa, faróis quebrados e cheiro de borracha queimada, eu estava no quarto olhando para o teto, achando tudo uma merda insuportável.

DOBRANDO A ESQUINA

Vira
O que virá
Virá
Me levar
Daqui
Pra outro lugar
Pro mar
Maré
Que alcança
Que avança
Pra lá
Sem parar
Maré
Dos que querem
E pedem
De pé
E de passos cansados
Descalços
Marcados
No chão
Se vão
Sem parar
Daqui
Pra outro lugar.








38

Os muros da cidade pichados com palavras e frases sem sentido algum, a geração que escreve o próprio nome para se auto-afirmar, sem anseios nem ideais definidos ou grandes o bastante para não ficarem contidos apenas em um pedaço de papel, de parede ou na folha de caderno da redação escolar.

NAS PAREDES

Não entendo por que é dor todo nosso desespero
Não entendo por que vivem, por que matam por dinheiro
Não entendo a nossa ira, nossa vã sociedade
Nosso mundo de mentiras, essa tênue falsidade
Não entendo o motivo porque as ruas são tão frias
Nem entendo o porquê desses nossos tristes dias
Não entendo tanto riso, tanta e quanta ignorância
O desprezo por acaso, nas pessoas a distância
Não entendo a teoria, nem entendo o conceito
Nem o antes, nem o depois, tudo o que tivermos feito
Não entendo a apatia que esconde o nosso choro
Não entendo tanto orgulho nesse grito de socorro
Não entendo a paciência dessa nossa grosseria
Nem a voz da consciência que não fala nem respira
Não entendo os seus tropeços, não entendo os seus passos
Não entendo esse caminho em que alguns andam descalços
Não entendo a iniqüidade que alimenta essa pobreza
Não entendo o desânimo dessa nossa incerteza
Não entendo tanta morte estampada em nossas vidas
Não entendo por que é forte exibir tuas feridas
Não entendo a solidão desses nossos movimentos
As palavras mais bonitas são caladas pelos ventos
Não entendo por que o vôo já não é mais tão bonito
O perigo na liberdade, que não vejo, mas que acredito
Não entendo a discussão que é inútil e sem sentido
Não entendo a contramão, nem a graça do perigo
Não entendo o que não faço, o que não acho e o que discordo




39

Não entendo por que dormem, por que dormem enquanto acordo
Não entendo o que é estilo, não entendo nossos gostos
Não entendo a alegria estampada em tantos rostos.



































40
Fim de um relacionamento de três ou quatro meses, não estava ligando muito, havia acabado de comprar uns discos de mpb e ficava o tempo todo ouvindo e lendo as letras das musicas do encarte. Poesias musicadas ou musicas poetizadas.

SÓ, PRA VOCÊ

Sem pedir licença
Como um intruso
Entrei sem bater na história da sua vida
Cheguei sem avisar
E sem pedir permissão
Pichei o meu nome bem no fundo da sua alma
Agora
A campainha toca
O telefone toca
Gente bate à porta
Mas só estou pra você

Eu, que entrei de repente
Meio que por acaso
Hoje tenho um caso
Um caso de amor descontrolado
Você
Tomou meu coração de assalto
Me deixou sonhando alto
Ando nas nuvens
Não volto

Agora
Gente vem e chama
Outro vem, reclama
Não ligo
Só estou pra você.




41

No fundo da classe, sexta de noite, dobradinha de física, estava de saco cheio, meia dúzia de outros alunos, os meus amigos enchendo a cara em um bar ali perto e eu estourando em faltas.

SOBRE AS FLORES

Sigo
E os problemas que carrego comigo
Ficam
Falo
Quase sempre sozinho
E quase nunca falo
O que eu sinto
Sonho
Mas diante dos seus olhos
Me calo
Quase nunca falo
Quase nunca ligo
O silencio sepulta a dor latente
Dentro do meu peito
Sigo
E os problemas que eu suporto
Ficam
O peso da bagagem que eu levo
Me doe as costas
Me doe as pernas
A cabeça
Por todo o caminho
Me sinto cansado
Mas sigo
Porque os espinhos passam
E passo
Porque os espinhos ficam.





42
Eu havia lido uma história em quadrinhos sobre dois irmãos siameses, o maior e mais forte fisicamente queria se matar pulando de uma ponte, enquanto o menor tentava a todo custo convencer o irmão de que a vida ainda valia a
pena. Sobre conflitos interiores. Não me lembro como acabava a história.

A DESPEDIDA

Sentado no parapeito
Segurando os meus olhos
E o meu coração inchado
Como quem diz: Obrigado!
Como quem olha
Mas não vê o rio

O mar agora já é tão distante
E nada disso é muito importante
Vivo quase que, sem perceber

No escuro da mente guardo uma ferida
Que corroí, embolora
Toda a minha vida

Entre suspiros e gemidos o sol nasce
Abafando e sufocando o que era nostalgia
Num canto disfarçado

O ultimo anjo despenca do céu
Arrancando-me pedaços
Lanço o meu abraço
Lembranças, memórias, histórias que levo
Num vôo infinito tão real e bonito
Como os olhos que fito
Nas águas do rio.





43
Hora do intervalo na escola, entrei no banheiro e esse cara que se vestia como executivo veio atrás de mim perguntando se eu tinha alguma coisa que desse
barato, eu tinha quatro comprimidos de Dramin no bolso, entreguei para ele e falei que deveria tomar os quatro, junto com alguma bebida forte tipo vodka ou gim, provavelmente deve ter ido até alguma drogaria comprar aquele remédio para o estomago depois disso.

FUMAÇA DA MINHA CABEÇA

Sopra fumaça da minha cabeça
Talvez me deixem louco
Talvez eu me enlouqueça
E a delirar saia cantando
Que sopra fumaça da minha cabeça

Sopra fumaça da minha cabeça
Que o mar vire deserto
Que a lembrança nos esqueça
E que as ruelas virem riachos
Pois sopra fumaça da minha cabeça

Sopra fumaça da minha cabeça
Num sorriso verdadeiro
De uma alma fria e densa
E o vento enlouquecido
Sopra fumaça da minha cabeça

Sopra fumaça da minha cabeça
Que o céu desabe
Que o dia anoiteça
E que desçam os anjos
Enquanto sopra fumaça da minha cabeça.






44

Uma casa de blocos, pequena e vazia, caindo aos pedaços, com mato por todo lado, dois cômodos, um fogão a lenha com panela pretas esquecidas e
enferrujadas, brinquedos quebrados, abandonados, espalhados pelo chão de terra batida.

FALANDO DE COISAS MORTAS

A alma calada
A janela fechada
Espreita
Cinza sentimento
No quarto, lá dentro
Cinza sentimento
Chora dilúvio
Dilúvio chora
Já passou, foi embora
O que ficou
Partiu, se quebrou
Criou chagas
Chora dilúvio
Dilúvio chora
Há tanta demora
Lembrança vasta
Que atém, que conduz, que me arrasta
Vasta lembrança
Lembrança vasta
Basta.











45

Meninas de uma cidadezinha do interior andando de um lado para o outro em uma praça com coreto e tudo. Sábado de noite, verão, milhares de insetos voando em volta da luz dos postes, batendo no rosto, no copo de cerveja e cachorros dormindo embaixo dos bancos.

VOCÊ

Você pela minha vida não passa
Você pela minha vida desliza
Com graça me traz primavera
Num sopro suave de brisa

Quem dera não fosse só sonho
Ter agora a tua companhia
Você pela minha vida é beleza
Você pela minha vida é alegria

Enaltece um coração que bate
Bate de amor e por amor vacila
Você pela minha vida não passa
Você pela minha vida desfila.

















46

Três prateleiras de cima abaixo em uma livraria com todo o tipo de livros de auto-ajuda que se possa imaginar, eu estava folheando alguma coisa sobre programação neurolinguistica e imaginando um enredo para uma escola de samba, o ritmo, a batida, os carros alegóricos, um tema qualquer que falasse de tédio, solidão e apatia.

O CÉU DO FIM À PONTA

Amigos são perfeitos
Detalhes são defeitos
A chuva é o que nos molha
O céu é quem nos olha
Correr é sacrifício
Parar é desperdício
Andar de encontro ao vento
Chorar é sentimento
Sorrir é sentir Deus
Deus que tanto brilha
Nos olhos de quem trilha
Quem busca é viajante
E agora é o instante
O momento certo
De olhar quem está perto
Mentira é distância
Verdade é importância
Nada nos separa
A vida é quem nos fala
O mundo gira imenso
Dançar é tão intenso
Viver é o principal
Amar é que é normal
Criança é beleza
Pra sempre é certeza
Troca é abraço




47

No rosto é um traço
A estrada é infinita
Se perde pra que eu sinta
Nas marcas dos meus passos
O gosto do que faço
Se faço por vontade
Seguir é lealdade
Um monte de histórias
Tudo são vitórias
Mais aprende o perdedor
Mais canta o sonhador
Entre curva e atalho
Desgosto é trabalho
Prazer é distração
Lamento é paixão
Espera é paciência
Bondade é inocência
Vontade é a mais bonita
Palavra é a que foi dita
Na alma se encontra
O céu do fim à ponta.

















48

Durante dois meses, três vezes por dia eu precisava me sentar em algum lugar tranqüilo e sozinho, então fechava os olhos e imaginava uma cena qualquer em que eu estivesse tranqüilo, feliz e cercado de coisas agradáveis, uma estrada deserta e bem cuidada, uma casa com paredes brancas de madeira, etc. A cena começava em branco e preto e aos poucos eu ia colorindo o quadro até ficar bem real.

PALAVRAS NA AREIA

Às vezes me imagino em um barco
Remando sozinho
Sem rumo nem direção

Outras vezes me imagino em um trem partindo
Para algum lugar desconhecido
Deixando no inverno o verão esquecido

Algumas vezes me imagino subindo
Voando e fluindo pelo céu infinito

Outras vezes me imagino sorrindo
Olhando inebriando
Os meus passos no chão.















49

Tarde da noite depois da aula no ponto de ônibus em frente à escola, praça deserta, exceto por dois outros caras envolta de uma fogueira ao lado de uma banca de jornal fechada, estava esperando pelo meu ônibus, o último, frio intenso de inverno, a ponta do meu nariz congelando e escorrendo. 96 ou 97.

ME LEVA

Leva
Vento que vem
Que leva
Vê se leva
E me leva junto
Leva ela junto também

Eu sei
Que se o vento me ouvir
Vai voltar
E se volta o vento eu sei
Que o vento vai querer
Me levar

Sopra
Sopra vento mais forte
E não neva
Eu não posso fugir de trenó
E nem quero andar de esqui
Leva vento me leva, daqui.











50

O professor estava contando uma piada e provavelmente eu era o único que não estava achando engraçado, era uma história idiota sobre Telletubies, parecia um seriado americano com aquelas risadas enlatadas. A menina que se sentava ao meu lado meu cutucou dizendo que eu estava muito sério naquele dia.

UNHA ENCRAVADA

É pela minha unha encravada
O tombo que levei na escada

É pelo meu dente dolorido
Meus feitos do passado esquecidos

É pela chuva que cai do lado de fora
E aqui dentro ta longa demora

É pela gente que anda nas ruas
As ásperas palavras suas

É pelo meu jeito tímido de ser
O ontem que tento esquecer

É pelo meu cabelo caindo
O custo de vida subindo

É pela minha dor de cabeça
Parte a noite, que amanheça

É pela minha falta de coragem para conseguir
A sua falta de sensibilidade para sentir

É pelas coisas que eu tenho que olhar
Ter a certeza de que nunca vou te amar




51

É pelo homem que distribui esmolas
As crianças de dentro das escolas

É por tudo isso que eu nunca dou risada
Mas é principalmente por causa,
Da minha unha encravada.
































52
Tinha uma garçonete gostosa em um bar que eu freqüentava. A gente já tinha trocado algumas palavras e eu sempre deixava uma folha de guardanapo com
alguma besteira qualquer escrita para ela. Geralmente versos com as inicias do seu nome, sei que ela gostava porque sempre guardava na bolsa. Ela tinha um namorado que vinha nas noites de sexta e sábado e ficava sentado em uma mesa distante, esperando ela sair. A menina não dava a mínima para o cara visivelmente apaixonado.

FALANDO DE AMOR

O beijo que te pega
Conduz à tua entrega
À fria e dura cama
Amar quem não te ama
Olhar que te ilude
Abraço morno e rude
Pequeno sentimento
Que é puro e em vão tormento
União desesperada
Deserta e escura estrada
Frase que te acena
Disfarça em dura pena
E o tempo leva e passa
Amor que não tem graça
Amassa o coração
Na queda ao duro chão
Entregue a tanta dor
De um feio e falso amor
O beijo que te pega
Conduz à tua entrega
À fria e dura cama
Amar quem não te ama.






53

Eu e uma ex-namorada enchendo a cara de cerveja em um bar afastado, parecido com uma lanchonete ou sorveteria. Estávamos contando piada e rindo
de qualquer coisa como dois bêbados, até que ela não conseguiu segurar a risada e acabou se molhando toda. Pouco depois fomos para um posto de gasolina abandonado ou fechado ou borracharia, não me lembro, e ficamos dentro daqueles buracos onde se troca o óleo dos carros.

POR TE QUERER MAIS

Vejo que te quero um beijo
Beijo que te quero a boca
Boca que te quero a roupa
Roupa que te quero pouca
Desejo

Faço que te quero amasso
Amasso que te quero quente
Quente que te quero frente
Frente que te quero sente
Volúpia

Sopro que te quero corpo
Corpo que te quero mais
Mais do que eu te quero traz
Traz que eu te quero faz
Enlouquece

Rosto que te quero gosto
Gosto que te quero prato
Prato que te quero tato
Tato que te quero fato
Só pra mim.






54
94 foi uma merda. Só consigo me lembrar de dias nublados e insuportavelmente solitários. Pessoas distantes. Eu distante, escondido lá no
meio do “valo” com dois amigos, tentando esquecer, tinha o grandão que não abria a boca para nada e o baixinho que falava besteira o tempo todo e ficava rindo de coisas que eu não achava muita graça.

MINHAS FERIDAS

Peço que calem, as minhas feridas
Vácuo noite, sombras amigas
Peço que beijem a minha comoção
E que se estanque, a percepção

Peço que calem, as minhas feridas
Horas imensas, vastidão dolorida
Pelo que sopre a última vela
E que se apaguem as lembranças, junto com ela

Peço que calem, as minhas feridas
Silenciosa penumbra, tempestades vividas
Peço um abraço da chuva que cai
Uma passagem de ida enquanto o dia se esvai.
















55
Eu estava dentro do carro com uma menina, contando sobre o que eu sentia e pensava, era um assunto bem pessoal e até certo ponto eu tentei soar poético e etc. E então ela deu um risinho amarelo, aquele tipo de sorriso que denuncia qualquer falsidade. E eu enxerguei no fundo daquele par de olhos escuros a total falta ou inversão dos sentimentos que eu tinha.

CORAÇÃO DE AÇO

Eu te abraço
Coração de aço
Eu me entrego
Corpo de prego
Eu te beijo
Boca que não vejo
Eu te procuro
Alma de muro
Eu te chamo
Boneca de pano
Te faço caricias
Falsas delicias
Escrevo poesias
Das suas ironias
Canto pra você
Você que nunca vê
Me escuta
Fingindo não me ouvir
Acha graça
Fingindo não sorrir
Me chama de bobo
Me faz de palhaço
E o coração de aço
E o coração de aço.






56

Uma tarde inteira, sozinho, fitando os meus olhos no espelho do banheiro. Vários dias iguais, 96 provavelmente. Eu havia rapado a cabeça com máquina zero e comprei dois colares de sândalo, parecia um hare krishna descrente, pensando no próximo bar, na próxima trepada, no próximo trem que eu teria de pegar e atravessar a cidade outra vez.

AUTO-RETRATO

Espinhos
Espelho
Retrato
Veneno
Queimo
O que tenho
Inundo
O que fundo
E me faz
Sentir-me
Pequeno

Quebro
O que compro
Desfaço
O que faço
Calo
O que canto
Não como
O que planto
Vozes
E frases
Se desfazem
Que eu fiz.






57
Eu estava a fim de fazer alguma coisa relacionada com artes plásticas. Fui até a oficina e cortei um punhado de pedaços de chapas de alumínio do tamanho de folhas de caderno e pintei todas de preto, depois fui riscando as palavras com a ponta de um saca-rolhas. Um texto sobre anjos e santos vindos nos pedir perdão.

UM SOPRO

Até mesmo que a luz desse dia se apague
E que toda inocência afogada de vaidade se estrague
E que o sol se converta em lua
Despida de moral a justiça se ver nua
Que o amor desapareça
E toda verdade parta que eu lhe esqueça
Até mesmo que a terra seja inundada pelo mar
E suas águas de tão sujas não nos deixem navegar
E que o sonho, todo o sonho do mundo
Sufocado por decepção caia em um abismo sem fundo
Mesmo que a noite parta com o dia
E toda triste verdade se fizer falsa alegria
E o que nos resta de verdade virar pura ilusão
Que desçam anjos e santos a nos pedir perdão
Que a música ao silêncio dos impuros se cale
E que nesse tortuoso silêncio só a ignorância que fale
Até mesmo que o romantismo e a poesia pereçam
E que toda a arte com seus encantos de vez desapareçam
Ainda que tudo isso de uma só vez aconteça
Que a noite nunca mais amanheça
E tudo o que é belo ameace acabar
Eu nunca vou deixar
De remar
De remar.






58
Um sonho musical pouco depois dos atentados de 11/09, Space Oditty e Major Tom batendo com um foguete (?) no topo de um prédio. Eu caia junto com o entulho, e a poeira. Pessoas como formigas nas calçadas.

O MANIFESTO DO SILÊNCIO ABSOLUTO

Façamos agora um minuto de silêncio em nome de todas as vitimas dos atentados em Nova York, em Washington e na Pensilvânia e façamos mais um minuto de silêncio em nome das vitimas da AIDS na Namíbia, Lesoto, Suazilândia, Botsuana, Zimbábue, África do Sul e Madagascar.
Um minuto de silêncio para as vitimas da seca no Quênia, Uzbequistão, Quirquizia, Afeganistão, Tadjiquistão, Azerbaijão, Cazaquistão, Tanzânia, Niger, Líbia, Chade e Brasil.
E depois, mais um minuto de silêncio para as vitimas do terrorismo na Espanha e Israel.
Para as vitimas dos bombardeios no Iraque, Geórgia e Palestina.
Para as vitimas da cólera em Honduras, Belize, Panamá, Haiti, Jamaica, Guatemala, Paraguai, El Salvador, Equador, Peru, Bolívia, México e Nicarágua.
E façamos mais um minuto de silêncio em nome de todas as vitimas da fome na Somália, Benin, Togo, Ruanda, Congo, Sudão, Etiópia, Uganda, Zâmbia e Moçambique.
Em nome das vitimas da guerra na Eritréia, Chechenia e Caxemira.
Para as vitimas da intolerância religiosa na Argélia e Irlanda do Norte.
Para as vitimas dos governos da China, Arábia Saudita, Coréia do Norte, Irã, Indonésia e Paquistão.
Mais um minuto em nome das vitimas do tétano em Sri Lanka, Mianmar, Filipinas, Tailândia, Índia, Malásia, Butão, Laos, Bangladesh e Nepal.
Em nome das vitimas da radiação na Rússia, Ucrânia, Belarus, Letônia, Estônia e Lituânia.
Das vitimas da guerra civil em Angola, Colômbia, Zaire e Republica Centro Africana.
Das vitimas das minas terrestres no Camboja, Libéria, Egito, Líbano, Chipre, Sérvia e Monte Negro, Jordânia, Vietnã e Bósnia.
Em nome das vitimas da malária no Suriname, Guiana, Camarões, Costa Rica,




59
Guiné, Venezuela, Republica Dominicana, Serra Leoa, Guiné Bissau, Costa do Marfim e Senegal.
E depois mais um minuto de silêncio para as vitimas da tuberculose em Gana, Gabão, Mali, Nigéria, Burkina Fasso, Gâmbia, Burundi, Malaui e Guiné Equatorial.
E se a todos esses minutos silenciosos, somarem-se horas, dias, me alegra se não tivermos passado o resto de nossas vidas no mais absoluto silêncio.































60

Na casa de um amigo, eu me sentava no quarto ou quinto degrau da escada, ele e não sei mais quantas pessoas fumando maconha na sala, falando ao mesmo tempo, tudo rápido demais, o rádio ligado, campainha e telefone tocando, alguém dedilhando uma guitarra desligada, risadas na cozinha e barulho de descarga.

MARIA JOANNA

Divagar
Que eu quero deitar
Divagar
Que eu quero dormir
Divagar
Que eu quero sonhar
Divagar
Que eu quero cair
Divagar
De frente para o mar
Divagar
Não vou mais desistir
Divagar
Fechar os olhos, voar
Divagar
Seu corpo agora sentir
Divagar
Ainda é tempo de tentar
Divagar
Eu sei que posso conseguir
Divagar
Muito além de te amar
Divagar
Basta apenas fluir.






61

Passando pelas ruas desertas da madrugada, sentindo o silêncio que cerca por todos os lados, as janelas das casas mortas e os muros cochichando segredos e histórias para os postes nas esquinas, enquanto no ar pairam infinitos dramas suspensos até que o sol volte a brilhar outra vez.

A DESPEDIDA DO AMOR

As palavras que da boca principiam
Qual um corvo que da cerca assovia
A esteira da noite enluarada
Converteu-se o outrora dia em mais nada
Os telhados brilham reluzentes
Acima de patéticos, dementes
Em gritos que se apagam na costura
Do negro céu que obra em branda rua
Ao silêncio de becos assombrados
Apressados passam vultos assustados
Anjos bêbados consentem desespero
Tempestades e neves de janeiro
Do pálido outono retorcido
Entre notas de sussurros e gemidos
Canta e gargalha o trovador
Em soluços ao final de um grande amor.















62
A vida de um peixe Beta dentro de um aquário no canto de uma sala refletindo a televisão ligada e o peixe boiando certa manhã de domingo.

TÉDIO

Meu cabelo está caindo
Eu quero beijar o sol
E sentir os meus lábios queimando
Minha língua está ficando preta
Vou mergulhar de cabeça no mar
E vou ver dois mil peixes chorando

Estou de costas para o meu oásis
Tentando lembrar o nome de um remédio
Tenho dor de cabeça
E no deserto tem uma farmácia
E eu tenho tédio
Eu tenho tédio.




















63

Estava com uma amiga em uma pizzaria. A gente havia pedido cerveja ao invés de comida, já fazia um tempo que estávamos ali conversando sobre nossas vidas, planos para o futuro e todas essas coisas. Eu me enrolei todo, pois não tinha nada em mente sobre o que eu faria até o final do ano e ainda estávamos em abril, então ela me olhou nos olhos e disse que eu não sabia o que queria da vida. Talvez ela estivesse certa.

NA ESTRADA

Quero uma cama em um quarto sem luz
Quero as estrelas pra fugir pela janela
Quero o silêncio de uma noite de inverno
Quero o abraço congelado da tua ausência
Quero o abraço congelado da tua ausência
Ainda que me seja abraço
Quero que o vento me abafe os soluços
Quero a razão desta nossa inexistência
Que o desespero vire canção
E tudo o que era sonho vire saudade
Quero a beleza no fim da maldade
Quero a força de um beijo apaixonado
Quero em teus braços me manter acordado.
















64

Eu e um amigo descemos de um ônibus às quatro da manhã em uma estrada deserta, bem no meio do nada. Subimos por uma trilha até o topo de uma montanha e ficamos sentados em cima de uma central de energia elétrica desativada, com duas garrafas de vinho barato e um estoque de cigarro suficiente para passarmos um mês. Ficamos brisados, bêbados e extasiados, vendo o sol nascer e as nuvens refletindo uma luz rosa-alaranjada, “O Grande Masturbador” de Dalí, descortinando-se à nossa frente. Deus na sua forma mais intensa e bonita. Isso foi em abril de 2000.

UM BEIJO NA BOCA DE DEUS

Deslizo minha alma dançante por estradas verdejantes
Todo instante é infinito
Dou voltas, vôo alto, no horizonte dou o salto
Nada é feio nem bonito
Cada encontro é abraço, e é tão, é tanto espaço
Minha vontade é de correr
Então paro, que me canso, que me deito em sono manso
E só acordo pra viver
O sol brilha puro, intenso, faço tudo o que penso
O céu é o limite que fito
A vida me abençoa, ando sempre a toa
Pois tenho tudo o que necessito
E é único o momento, por demais que é o sentimento
No ar paira magia
Tudo tem um por que, não vou tentar entender
Vou espalhar-te alegria
Cada dia é diferente, cada esquina é tanta gente
Tanta história para se contar
Na bagagem levo respeito, um sopro afinado no peito
Um poema para recitar
Tudo tem um final tão feliz, que é quase por um triz
Que eu não me enlouqueço
Tudo ficou para trás, e mesmo agora tanto faz




65

Passo que me esqueço
As arvores cochicham segredos, os homens escondem os seus medos
O vento é um sábio senhor
Deus se revela em detalhes, as almas se cruzam em olhares
E os olhares se fundem no amor
O mundo inteiro me abraça, a chuva cai com tanta graça
Nem ouso traçar meu destino
A natureza se desnuda, é eterna porque muda
Eu sigo o meu caminho
Heróis anônimos nas ruas, as doces palavras suas
E a vida que não pede licença
Que passa em giros imensos, tão grandes quão intensos
Nada lhe faz diferença
Um pesadelo desperto, assim como um sonho incorreto
Na ilusão da ignorância dissipada
O tudo que é confuso, paradoxo, desuso
Fundiu-se no Deus-Nada
Nada é para sempre, palavras são sementes
Sementes que arrepiam
Que açoitam, que nos calam, que espreitam, que nos falam
Que expiam
Minha alma canta, tanta coisa, tanta
Que quase fico rouco
Nas alturas me elevo, o mundo inteiro observo
Como o homem é pouco
E como sou pequeno, quando estou sereno
Transbordando milagres invisíveis
Na vasta estrada de areia, que entre vales e montanhas serpenteia
Com suas histórias impossíveis
E viver é caminhar, é passando – deslizar
Entre pássaros e borboletas
Além da paisagem do horizonte, além, muito além da ponte
Entre nuvens brancas e pretas
Sigo descalço, no cortejo do falso




66

Só a verdade existe
E passo sem pressa, só o que me interessa
É o que se persiste
Um agora que permanece, que molda, que tece
Um manto para noite fria
Que me faz querer mais, então busco, vou atrás
Transcendendo o fim do dia
O infinito me abençoa, em uma palavra que ecoa
Por todos os lugares
Vida – a palavra que abraça, que se inunda, que se arrasta
Multiplicasse aos milhares
Esteira arrepiante, de infindáveis mil instantes
Que nunca são iguais
Em tudo o que espero, que seja assim sincero
Para nunca ser demais
Entre a promessa e a esperança, existe sempre uma criança
Disposta a te sorrir
E o vento vem e parte, nunca nada é tarde
Para a gente conseguir
Na arena da minha existência, irradia a tua excelência
Tua vontade, minha fé
Palhaço agora são reis, eu te dou a minha vez
Prefiro seguir sempre a pé
O sol brinca de esconde com a lua, ela falou: eu sou sua!
Mas eu não sou de ninguém
Por isso sigo sozinho, às flores e pedras no caminho
Sentindo-me e assim tanto bem
Lá na frente, na estrada, a música mais bonita é a que estará sendo tocada
Naquele exato instante
Quase nada importa realmente, só o amor é diferente
Pois só ele é importante
Fios de energia se abraçam, se confundem, se entrelaçam
Entre ventos que suspiram
Chuvas e tormentos, sonhos que foram feitos




67

Mas que nunca desistiram
O rio corre manso, quieto, já nem sei se chego perto
Pois da noite agora é a vez
E a sombra se mistura com a água, rio sereno que deságua
Imenso mar de lucidez
Embriago-me em transparência, vertendo-me na existência
Arco-íris de mil cores
E vou fundo a dissolver-me, nessa alma que se espreme
Entre graça e dissabores
Num soluço me desfaço, espalhando a cada passo
Minha imagem & semelhança
O agora já não existe, nem o alegre, nem o triste
Nem tampouco a distância
Es que toco o teu rosto, que te sinto – o teu gosto
A misturar-se com os meus
E o meu corpo é só desejo, minha vontade é um beijo
Um beijo na boca de Deus.





















68

Era a mesma pessoa para quem eu costumava escrever histórias com finais felizes e rabiscar desenhos engraçados em folhas de caderno. Era a mesma pessoa que eu cruzava a cidade todas as noites só pra poder ficar alguns minutos por perto. Era ela, linda, sorrindo, parada. E de uma hora para outra, tão sem graça como uma tarde de terça.

METAL PESADO

O beijo escorrega e vira aço
Escapam entre os dedos, estilhaços
Teu rosto e teus cabelos queimam
Ao fogo das palavras que incendeiam
O que era doce ao toque vira pedra
O abraço vira aço e também queda
A alma evapora-se com o dia
A congelar-te os olhos, principia
O grito que vacila, derretendo
Em suspiros & arrepios, me mordendo
O beijo escorrega e vira aço
Escapam entre os dedos, estilhaços
Teu rosto e teus cabelos queimam
Ao fogo das palavras que incendeiam.
















69

Eu devia estar na sexta ou sétima série quando li Anarquistas Graças a Deus da Zélia Gattai, havia uma parte sobre uma menina que por engano foi dada como morta pelos médicos, então ela conta sobre seus pressentimentos, do sonho que teve, do espelho, etc. Ainda hoje quando penso em Anarquistas Graças a Deus essa é a primeira parte de que me lembro. Imaginei a mesma história, com toques medievais, uma espécie de Branca de Neve que não deu certo.

O SONO DE INGRID

Ingrid dormia seu sono profundo
Um sono de anjo a muito estendido
Deitada na cama, aos poucos partia
Ninguém duvidava, Ingrid dormia

Tinha o ar sereno, de noite bem dormida
Rosto de porcelana, Ingrid sorria
Do andar de baixo a mãe sussurrava
Aos ouvidos do filho que barulho fazia

Mas anjos vindos de abismos escuros
Sentaram-se ao pé da sua cama
Ingrid dormia como dorme o oceano em noite fria
Era forte o vento, chovia

No branco do seu rosto foi tecendo em seu lugar
O verde limo das pedras que repousam em alto mar
Seu ar que sereno já fora um dia
Um dia já fora, mas agora partira

Ingrid dormia seu sono de vinte dias
Quando seus olhos mergulharam
Na beleza da face que a muita jazia
Ingrid não mais sorria




70

E do cheiro pútrido que sentira
A criada que acreditava que Ingrid dormia
Milhares de pequenos vermes como lombrigas assanhadas
Na barriga do seu lindo corpo cobrira

Mas Ingrid dormia

Dorme Ingrid. Cantou-lhe o pai
Dorme Ingrid. Cantou-lhe a mãe
Dorme Ingrid. Minha filha
E Ingrid dormia
Na cama vazia.


























71

Depois de passar uma tarde inteira no escritório, havia uma árvore do outro lado da rua, o telefone quase não tocava, por pouco não pego no sono enquanto lia um livro. John Steinbeck, talvez. Fumaça de incenso, silêncio e angústia.

DIA DE AGONIA

Era dia
Era dia de agonia
Ninguém me falava
Ninguém me ouvia
Embora eu gritasse
E ninguém me escutasse
O meu grito ecoava
Só lá, onde eu estava
E eu estava longe de tudo
Que o tudo parecia nada
Lá onde eu estava
Naquele dia
Que era dia de agonia
Ninguém me notava
Ninguém percebia
O espelho refletia a verdade
Era dia, mas já era tarde
A música havia acabado
A luz já tinha se apagado
Agarrei-me no brilho de uma estrela
E ali fiquei, escrevi um poema
Era dia
Era dia de agonia
O mundo me enganava
Mas o espelho não mentia
Ali onde eu estava
Ninguém jamais chegaria




72

Só o silêncio ficava
Imerso no vazio do dia
Como um soluço pensado
Como um grito abafado
Pela frieza do mundo
Incapaz de aquecer-me o coração.
































73

Duas, três horas da tarde, eu estava indo de farmácia em farmácia tentando encontrar alguma que vendesse colírio ciclopédico sem receita médica, por fim acabei encontrando uma e voltei para casa sem noção do tempo, imaginando lagartixas cruzando o meu caminho pela calçada e baratas nas paredes da sala de aula depois.

CONFISSÃO

Amor rima com dor
Meu sentimento de culpa
Sim rima com fim
Posso pedir-lhe desculpa?

Medo rima com cedo
É cedo demais pra voltar
Doença rima com crença
Mãe, não vá me deixar

Caminho rima com sozinho
Talvez eu esteja mesmo assim
Escuro rima com muro
Talvez eu nem esteja, enfim

Morte rima com forte
E eu aqui, sonhando acordado
Loucura rima com cura
O meu olhar te olhando apagado.











74

Uma noite fria de inverno, eu e um amigo em um bar, ficamos em uma mesa de frente para a janela, a rua deserta e de repente eu vi essa menina indo para não sei onde, ela tinha o cabelo curto, loiro, cacheado e o rosto tão branco quanto uma atriz de cinema nos anos 40. Voltei lá outras vezes e pouco depois disso abaixaram as portas. Respirava música folk.

DESENCONTRO

Talvez eu nunca perceba a ferida da tua ausência
A carência do teu abraço
O silêncio da tua voz

Talvez eu nunca perceba a dor que me causa a tua falta
O frio de não ter o teu corpo
A angústia de não te encontrar

Talvez eu nunca perceba a saudade da tua distância
As marcas das minhas lembranças
A tristeza de ter te perdido

Pois nunca te tive, nem te tenho ao meu lado
Mais perto do que num sonho é possível

E quando eu te vejo envolvida em fumaça
Quase sempre você passa me arrastando
Na esperança de um dia eu te encontrar.












75

Andando pelas ruas do centro da cidade consegui encontrar um bar onde eu pudesse ficar olhando para a igreja da Sé enquanto bebia, pensando em monges, rezas e velas acesas. Seria capaz de passar boa parte da minha vida dentro daquele castelo louco, lindo e gigante.

SÃO PAULO

São Paulo cinza, cidade fria
Nas ruas onde andei só, um dia
São Paulo cinza, cinza alegria
Nas ruas onde andei só, um dia

Fumaça de cigarros & copos americanos
Com restos de vinho e café
Arrastados pela chuva para dentro dos bueiros
Até os trilhos do metrô

Um banquete no espelho, o farol que é vermelho
Teus olhos são vermelhos da cor dos teus cabelos

Carros enfileirados navegam rio abaixo
Prédios, santos e remédios nas vitrines da avenida
Poças de chuva refletindo a luz dos postes
Palco onde desfila a rotina embriagada

O perto é distante e imperfeito
Breve tempo, intermináveis, os seus vagões
Curtos espaços, sonhos curtos nos muros
Interligados por cabos de alta tensão

Lucidez pouca, louca miopia
Uma voz rouca, claustrofobia
Em cada esquina, de cada rua vazia
São Paulo cinza, cidade fria.




76

A impossibilidade de conhecer alguém que me despertasse algum tipo de sentimento / afeto como aqueles descritos pelos poetas e músicos. O cinza, preto e branco de dias tediosos e repetitivos.

PARADOXO

Antes que eu me esqueça
Meu nome é risonho
Mas não me conte uma piada
Que eu não dou risada
Não acho graça em nada
Vivo de, um sonho

Um sonho que é pequeno
De canto vil, efêmero
Ter a quem amar

Antes que você se vá
Meu sonho é correr
Sumir sem persistir
Pra não te ver sair
Por não querer me ver

Eu vejo você tão bonita
De saia branca de renda
Cabelo preso com fita
Fita amarela de seda

Da praia te vejo no barco
Descendo a rua apressada
Lá longe sumindo na estrada
Na outra margem do rio.






77

A única pastelaria do bairro onde serviam chope gelado também era a que tinha a mais perfeita e linda garçonete que eu já conheci, muito insegura e infantil também, minha Natalie Merchant de cabelos compridos por curtos e conflitantes três meses.

DANIELA

Ela falou baixinho
Disse que me amava
E foi tão baixinho
Quase que eu não escutava
Ela falou, eu te amo
E tudo ficou tão perfeito
Ela falou, eu te amo
E foi daquele seu jeito
Jeito de menininha
Jeito de quem me amava
Ela falou baixinho
E eu quase que não escutava
Bem perto do meu ouvido
Ela falou sussurrando
Disse que me amava
Eu também estava amando
Ela falou baixinho
Ela falou de repente
E quando me disse aquilo
Tudo ficou diferente
Ela meu deu um mundo
Eu dei meu mundo a ela
Ela falou, eu te amo
Eu te amei, Daniela.







78

Revistas com letras traduzidas, letras que falavam de porcarias sem sentido, estava tentando ler Espumas Flutuantes, mas não consegui passar da página vinte. Lembro-me de ter encontrado esse livro por acaso debaixo da escada e se ninguém andou mexendo aquelas coisas provavelmente ele continua lá até hoje.

FOGO

Fogo queima minha alma
Eu corro

Fogo queima a minha alma
Eu fujo

Fujo para um lugar distante
Sozinho
Onde guardo meus poemas
Minhas poesias
Minhas palavras
Minha agonia

Fogo queima queimando minha alma
Queima e continua a queimar
E eu corro
Eu fujo.













79

Um soldado que servia comigo no quartel levou um tiro acidental de fuzil bem na boca. A munição atravessou fazendo um buraco na parede de guarita. Escrevi uns versos atrás da porta do banheiro junto com frases para os tenentes e sargentos filhos da puta. A coisa mais útil que se pode aprender no exército é o que se lê atrás das portas dos banheiros.

MORTE

Morte
Corte profundo
Morte
Um corte, dentro de mim
Morte
O escuro do fundo
Morte
O inicio do fim

Morte
Dor duvidosa
Morte
Bater de asas
Morte
Cheiro de rosas
Morte
Singelas e escuras casas

Morte
Silêncio completo
Morte
Pacifico mar
Morte
Brilho repleto
De morte
Dor de amar.




80

Um amigo ampliou uma foto de uma modelo (não me recordo seu nome) dos anos 60 e colou na porta do quarto, ela tinha flores no cabelo e usava um vestido branco, parecia uma versão hippie da Marlin Monroe em uma típica praia deserta inglesa.

NA BEIRA DO MAR

Foi lá embaixo
Lá bem perto do mar
Eu a vi passando
Deslizando de vagar
De rosto fino
E cabelo emaranhado
Vestido branco
Cetim meio amassado
Era tarde de outono
Eu ali observando
Quando dei por mim então
Era ela deslizando
Fiquei da janela
Vendo-a desfilar
Talvez fosse embora
Talvez fosse voltar
Tinha rosas no cabelo
E o cabelo era comprido
Quase do tamanho
Do seu branco vestido
Hora ou outra parecia
Que fosse uma sereia
As ondas nos seus pés
E os seus pés ali na areia
De repente assim do nada
Uma onda apareceu
Sufocando a poesia




81

Que no mar se escondeu
E na praia deserta
Mais nada existia
Só as ondas nas pedras
Em que a água batia.

































82

Eu estava no quarto com a cabeça apoiada no travesseiro, a t.v ligada na sala passando um filme, sons de tiros e batidas de carro. Sábado a noite, e eu havia misturado valium com álcool, sentindo-me como se pesasse 200 quilos, flutuando em uma cama de algodão.

O ROSTO

Rosto do espelho
É impossível eu vê-lo
Seus olhos são brilhantes
Como dois diamantes
Quando a vertigem for embora
Estarei te esperando
Do lado de fora
Rosto do espelho
Teu olhar é vermelho
Penetra na minha alma
Inunda-me, me acalma
Ao retorno da penumbra ensandecida
Estarei te esperando
Na porta de saída.

















83

Uma cidadezinha do interior sem ninguém nas ruas, estradas de terra, areia branca, vista verde lá embaixo, brisa de verão, silêncio e solidão, eu estava de bicicleta e tinha que pedalar mais uns vinte minutos até voltar onde meus pais estavam.

BAGAGEM, SONHO E FUMO

Não tenho casa nem rumo
Se canso me deito e sumo
Andando de um lado para o outro
Tudo no mundo eu encontro
A lua é do outro lado da rua
O chão é um pedaço de algodão
A escada é uma estrada comprida
Cada soluço é vida
As pernas são velas eternas
À deriva, quando a alma está viva
As pessoas que andam são boas
Se param as velas se calam
Levo a cabeça ao vento
Solta, sem pensamento
Ando a toa agora
Vivo o momento, a hora
Nada espero, contento
Busco manter-me ao vento.













84

Noite de sábado, sentado no sofá de casa rabiscando as folhas de um caderno com letras verdes, palavras desconexas, o esboço de alguma história que nunca chegou a lugar nenhum. Era sobre carros, a cidade e melancolia.

SOZINHO

Sozinho, eu aqui chorando tentando esconder
Como quem ama e não sabe o porquê
Caminhando no deserto a passos largos
Atormentado por pensamentos vagos
A vomitar o orgulho
A janela de frente para o muro
Perdido entre montanhas
E elas tão estranhas
Parado aqui esperando te encontrar
Como quem vê a vida passar
Catando conchas na praia
Até que a noite caia
Sufocado entre paredes e remédios
Paisagens todas prédios
A olhar a t.v desligada
E contemplar a escada
E esquecer meu próprio rosto
Ao espelho sentir-me, desgosto
O gosto amargo da decepção
Como o medo que me mata a ilusão
Às vezes me pego sonhando acordado
A espera de algo acabado
O sol do verão já foi, já passou
E o brilho dos seus olhos me cegou
De um sofá imaginário imagino sorrisos no horizonte
Como á água que seca da fonte
Sozinho, colhendo flores que já morreram
Plantando flores que já colheram.




85

Um sonho em que eu estava consertando qualquer coisa em um aparelho de ar condicionado, uma sala cheia de bebês dentro de incubadoras, havia alguém comigo, me ajudando, vestido de preto e fumando, e eu preocupado com as cinzas do cigarro, com medo que caísse dentro de alguma incubadora. Fui lavar as mãos em uma torneira no canto dessa sala e havia um bebê morto dentro da pia, verde e retorcido.

UM FEITO DO FETO

Corpo
Torto
Morto
Solto
Éter
Eternecido
Dentro
Dentro do vidro
Forma
Desforma
Deforma
Em formol
Corpo
Torto
Morto
Solto da vida
Sopro
Saída
Porto
Partida
Éter
Eternecido
Dentro
Dentro do vidro.





86

Encontrei uma fotografia minha antiga e desgastada nos fundos de uma caixa cheia de contas de telefone. Alguém me segurava no colo, não dava para identificar quem era, a foto está cortada, estou chorando, concluo que não deva ser minha mãe. O fundo parece o mar, mas também poderia ser uma parede cinza descascada.

CINZA, PRETO E BRANCO

Que as águas do mar me levem e não me façam voltar
Que a última palavra seja dita
E que seja uma palavra bonita
Que seja uma palavra de adeus

Que o dia logo acabe
E que a noite ceife de vez essa vida
E esse brilho que me cega
Em dias de sol

Que todos os pássaros partam para longe de mim
Junto com todos esses barcos
Que navegam com suas velas coloridas, seus sorrisos de alegria
Suas canções

E eu aqui sentado na areia da praia
Olhando tudo parecer tão distante, frágil e transparente
Que até parece com um retrato meu
Cinza, preto e branco.











87

Uma namorada que morava longe o bastante para que nos encontrássemos uma ou duas vezes por mês. Um sonho confuso (como geralmente os sonhos são) acordei com o telefone tocando.

UM SONHO (PARA LAU)

Ontem sonhei que te via
No sonho você fazia
O desenho de um coração

Ontem sonhei infinito
Foi sonho e foi sonho bonito
Você apertou minha mão

E me disse coisas que sentia
Se era amor ao certo não sabia
Então você me beijou

Ontem sonhei com você
No sonho eu corria pra te ver
No meio de um campo florido

Ontem sonhei poesia
Juntos a gente sorria
O sol já havia nascido

E ficamos horas e horas olhando
Eu estava sonhando
E então, você me acordou.









88

Mostrei as quatro primeiras linhas para um cara na época da faculdade, antes que eu terminasse. Ele inventava histórias e contava para os seus filhos, histórias coloridas com final feliz. Eu estava com a cabeça nos blues amargurados dos caras traídos, bêbados e sozinhos.

PARA UM AMOR QUE PARTIU

Queria um pouco a tua poesia
Perdi por completo o calor do teu abraço
Embora você não saiba tudo o que eu queria
Era que você me fizesse tudo o que eu te faço
Corri feito um louco para poder te encontrar
Acabei encontrando a vastidão da tua ausência
Talvez você nunca tenha estado naquele lugar
Talvez eu nunca tenha estado na tua presença
Hoje os dias passam sussurrando
Espalhando que talvez você nunca ira voltar
As janelas da minha vida se abrem te esperando
Procurando um motivo para acreditar.



















89
Eu e uma amiga em um parque, ensolarada tarde de inverno, procurávamos um lugar afastado, acabamos encontrando um “buraco” atrás de uma fileira de árvores recém plantadas, o lugar parecia um pântano, tirei a blusa para apoiar a cabeça. Comecei a falar umas coisas bem tristes e ela pediu para que eu parasse com aquilo. Depois reparei que a minha blusa estava com um buraco na manga, provavelmente causado por um cigarro nosso aceso.

UM GRITO

Eu bem que poderia ir embora
Eu bem que poderia ir embora agora
Eu bem que poderia
Eu bem que poderia ir embora agora junto com dia
Eu bem que poderia

Eu bem que poderia ficar
Eu bem que poderia ficar e tentar
Eu bem que poderia
Eu bem que poderia ficar e tentar te trazer alegria

Mas não,
Eu não conseguiria

Eu não conseguiria esconder
Eu não conseguiria esconder ao te ver
Eu não conseguiria
Eu não conseguiria esconder ao ter ver toda essa fobia
Eu não conseguiria

Eu não conseguiria disfarçar
Eu não conseguiria disfarçar do teu olhar
Eu não conseguiria
Eu não conseguiria disfarçar do teu olhar toda minha ira





90

Eu bem que poderia
Eu bem que poderia dar um grito
Eu bem que poderia dar um grito esquisito
Eu bem que poderia
Eu bem que poderia dar um grito esquisito de socorro à nostalgia

Eu bem que gostaria
Eu bem que gostaria de não ter motivos
Eu bem que gostaria de não ter motivos tão vivos
Eu bem que gostaria
Eu bem que gostaria de não ter motivos tão vivos
Quem sabe assim eu brilharia
Eu bem que poderia.

























91

No caminho de casa para a escola havia uma livraria com milhares de livros antigos empilhados & empoeirados. Eu passava por lá quase todos os dias e geralmente perdia a primeira aula, às vezes chegava na classe como nariz irritado e algum novo livro no meio dos cadernos de sempre.

ATMA

Sei da calma que sustenta a minha alma
A essência da qual brilha o meu peito
Sei do fogo indolente da paixão
Conheço histórias que nem sei contar direito
Sei do brilho que se apaga, mas não morre
Já vi frutos renascidos no escuro
Provei da água e do vinho servido
Sei da fonte que conserva o que é puro
Imaculada é a pedra do caminho
Dos sorrisos é que tenho mais distância
Sei décor e saltitado seus disfarces
Que os lamentos são da alma na inconstância
Sei do vento que sopra sem barulho
E da música tocada sem alarde
Sei do sol que brilha além do muro
E da vida que dança quando é tarde
Sei qual é o sopro que move moinhos
E da pressa por que tudo se atrapalha
Sei dos segredos nas entrelinhas do caminho
Sei daquilo de que tarda, mas não falha
Cegas são as cabeças pensantes
Perdidas entre um horizonte e outro
Vacilantes, vagando no mundo das aparências
Sei do fim ao que sigo eu encontro
Já vi portas que abriam para nada
Sei de outra que fecham para tudo
Da glória e fracasso tens miragens




92

Se ouvir o que fala e conta mudo
Sei da força que sustenta a minha vida
Da grandeza em vão ignorada
Ilusões transformadas em feridas
E as feridas transformadas em escadas.

































93

Voltando para a cidade depois de duas semanas de férias no interior e vi essa família pelo espelho retrovisor, o pai, a mãe e os filhos pequenos, todos plantados na beira da estrada, olhando o carro que se afastava para o caos da cidade grande novamente, plantações de milho e o silêncio de um fim de tarde.

MEDO

Temo que eu já tenha o tempo
O tempo que me foi perdido
Agora eu já não peço nada
Nem sei o que me foi pedido

Temo que um dia, a noite
Amedrontada com o sol, desapareça
E ao silêncio do meu sono, não me chame
E a morte me acompanhe, que amanheça.






















94

Dentro de uma galeria, jogando fliperama com o Baixinho (cozinheiro do bar). Alguém estava falando alto na calçada, não dava para ouvir direito por causa do barulho das máquinas, havia todo o tipo de igrejas por perto, algumas improvisadas em garagens minúsculas, com meia dúzia de bancos de madeira. Era triste ver aquilo, como era triste ver os caras cadavéricos comprando pedras de crack na saída do estacionamento. A doença e o sintoma da doença, cada um de um lado da rua.

DEUS PAPAI-NOEL

Some deus homem...some
Some do imaginário coletivo
Desse conceito primitivo
Deus papai-noel
De gesso ou de papel
Some...deus bondoso
Caridoso
Some...dissipando-se como fumaça
Do negro trem que passa
Deus papai-noel
Lá no alto, lá no céu
Olhando e controlando
Julgando e castigando
Some...deus que pune
Some...deus que une
Que eu mesmo faço
A minha união
Deus sem sentido
Deus ilusão
Pairando, parado, ao léu
Estátua de concreto
Deus papai-noel.






95

Uma dessas modelos fotográficas cadavéricas sendo entrevistada em um horrível programa de auditório. A apresentadora fazia as perguntas mais imbecis possíveis, olhos rasos e perdidos, uma voz mecânica e uma platéia alheia. Lembrei-me de ter lido uma matéria recente sobre anorexia / bulimia. Não fiquei muito tempo assistindo aquilo.

OUT DOOR

Teu rosto é tão bonito
Que eu quase não escuto o teu grito
O teu grito pedindo ajuda
Soando silenciosa, muda
Teu jeito é tão doce
E como eu gostaria que fosse
Pouca a tua vaidade
Pairando perdida na tua humildade
Teu rosto aflora beleza
Mas teus olhos não escondem a tristeza
Nas incertezas dos teus caminhos
Faltam-te flores, sobram-te espinhos
Seu passar espalha graça
Espalha-se por onde você passa
Mas algo fica faltando
Algo que não estou escutando
Talvez o soar do teu grito
Escondido de trás do teu rosto bonito.












96

O chão molhando com um pouco de vinho, sentado na cama de frente para o espelho e as luzes apagadas, minha camiseta em cima da cadeira e os meus sapatos perdidos no escuro. Velvet Underground e mais um dia bebendo sozinho.

A MORTE DA ENTREGA

Meu beijo que se apaga
Que esquece e se estraga
Estilhaça e despedaça
Escorrega-se, se arrasta
Meu beijo que congela
Pintado em aquarela
Eterna primavera
De um dia que não era
Meu beijo que se ausenta
Na dor que me atormenta
Meu beijo que sustenta
Saudade que me atenta
Meu beijo silencia
Falece em agonia
Desce e principia
Silenciosa gritaria
Meu beijo que é descanso
Que grita em sono manso
Cala enquanto danço
Vai que eu não alcanço
Meu beijo que perece
Sucumbe e se apodrece
Num toque que envelhece
Sai, desaparece.







97

Eu e mais quatro amigos com doze garrafas de long neck indo para uma festa no subsolo de um prédio residencial. Mas não tinha nada por lá, com exceção de um som pequeno em cima de uma pia tocando Janis Joplin, One God Man, etc. Não tinha o que comer tirando intragáveis brigadeiros improvisados. E as nossas doze garrafas de cerveja desapareceram em menos de 1 minuto. O segurança vinha toda hora com um farolete reclamar do barulho, o lugar todo parecia um mausoleum com marcas de infiltração de água no teto.

VIDA INDIGESTA

Vida indigesta
Me chamou antes de começar a festa
Me deu água ao invés de vinho
Puxou assunto e me deixou falando
Sozinho

Vertiginosa
Se fez de importante, distante
Pomposa
Não me visitou, não me telefonou, nem me escreveu
E ainda me disse que o culpado de tudo fui eu
Eu que sempre te carreguei comigo
Como um fardo, em silêncio
Um abrigo
Eu que por você chorei e sorri
E aprendi a me levantar quando tropecei e cai

Vida comparsa
Eu sei que nada fica
Eu sei que a gente passa
Permita-me então, chamar-te de Deus
Pois os sentimentos não me pertencem
São teus





98

E agora que te olhei nos olhos
E falei toda a verdade
A minha única vontade
É viver-te até o fim.


































99

Eu estava em um desses bares onde as mesas ficam na calçada. Debaixo de um toldo, conversava com duas meninas, uma delas, a mais bonitinha estava esperando um cara, a outra ficou um bom tempo na mesa até que foi embora. Não insisti nem nada, fui para um videokê e recitei um poema sobre o amor ao invés de cantar uma música. As pessoas não entenderam direito o que estava acontecendo e eu não esperava que elas entendessem.

SOBRE O AMOR

Andam espalhando um boato, não sei é mentira ou se é fato
Sobre um tal de, amor
Mas, o quê é o amor?
Você sabe o quê é amor?
Não será, um novo programa de computador?
Ou quem sabe, salgadinho de isopor
Não sei, não faço idéia do que seja amor
É assim mesmo que se pronuncia? Amor?
É com A ou com H que se escreve?
Mas, será que se deve perder tanto tempo pra discutir esse, amor?
Palavra engraçada, até parece, nome de piada, de conto de fada
Amor
Ah, imagino o publicitário inventando esse troço
Deve vender um bocado nas feiras e supermercados
E imagino o vendedor gritando:
- Venham, aproveitem a oferta, que o amor está acabando!
- Minha senhora, o amor está quentinho, saiu do forno agora!
- O senhor ficou ótimo com esse tamanho de amor!
Ai terá amor para todos os gostos
Amor de todas as cores, de todos os sabores
Do mais simples ao mais sofisticado, também lá no alto estampado
No imenso out door
Amor, quem poderia ter essa idéia?
Algum marqueteiro de campanha eleitoral?
Algum músico frustrado ou um poeta marginal?




100

Que estupidez a minha,
Ficar aqui divagando sobre uma coisa que eu nem sei ao certo se existe
Sobre algo que desconheço, que nem imagino o preço
Ainda mais se for cobrado ICMS desse tal de amor
Que bobagem,
Esquece.
































101

No acento gelado de um ponto de ônibus, pessoas esperando e passando de um lado para o outro. Um imenso cartaz nas minhas costas iluminando os rostos das pessoas, propaganda de alguma coisa. Olhares perdidos no meio do trânsito e fora dele, no meio do barulho, por todos os lados.

CONCRETO

O sorriso não é verdadeiro
Sentimento não é o primeiro
As luzes são todas escuras
As vidas são frias e duras
Os corpos se tocam por acaso
Os rios que correm são rasos
História nunca foi realidade
Tudo o que morre é cidade
A música não é mais importante
Os livros viraram estantes
A dança virou ritual
A festa virou carnaval
Os olhos são como espelhos
Os sonhos são todos pequenos
Amores que já se perderam
Amigos que ontem morreram
Lugares que foram embora
Penso em todos, agora.













102

Uma praça vazia e mal cuidada perto de casa. Um lugar que eu passava praticamente todos os dias. Bancos quebrados, rabiscados, cheiro de mijo e lixo, nunca havia ninguém naquele canto do bairro, fios elétricos descascados onde pássaros morriam eletrocutados.

PRELÚDIO

O sol morre todo dia
Não precisa me acordar
Amanhece a agonia
E demora a passar

A noite é só mais uma noite
Pouquíssimas estrelas
Pouquíssimos poetas
Pouquíssimos poemas

Nada novo, de novo
Nada brilha novamente
O silêncio emana tédio
E a lua jaz ausente

A mesma parede do quarto
Nas ruas os mesmos olhares
Sempre o mesmo ontem
Empilhando em becos vulgares

O dia todo passa se arrastando
Só as marcas das palavras ficam
Nas pessoas, rostos que se cansam
Só as pessoas passam
Só, as pessoas ficam.






103

Tinha duas meninas na minha classe que sempre andavam juntas, uma delas escrevia poemas e a gente conversava sobre isso na maioria das vezes. Um dia eu cheguei um pouco antes e a outra (a que não escrevia) pediu para que eu escrevesse alguma coisa no seu caderno. Fiz um rascunho no meu, depois passei a limpo no dela. Embaixo de um letreiro iluminado.

UMA NOITE COM VOCÊ (PARA ANDRÉA)

Tal qual um beijo
Em boca de metal
Tal qual a lua
Em véu branco de sal
Tal qual areia
Caindo em precipício
Tal qual um grito
Da janela de um hospício
Tal qual a mão
Trêmula ao pedir perdão
Tal qual a besta
Nas frases do sermão
Tal qual o dia
Em que tudo se acabar
Tal qual um sonho
De se perder no mar

Mais uma noite
Com você.











104
Uma menina de saia com os braços abertos, um desenho em forma de palavras ou palavras que formam um desenho, escrito pela primeira vez com as palavras centralizadas.

O MAR E A JANGADA

Ainda que pessoas tivessem asas
Ainda que não existissem mais casas
Ainda que pessoas nascessem de casulos
E não existissem mais quartos escuros

Ainda que pessoas soubessem voar
Ainda que por um único segundo
Todas as pessoas do mundo
Aprendessem a amar

Ainda que pessoas contassem histórias
As mais bonitas
De todas suas vidas

Ainda que inventassem piadas
Sempre engraçadas
Ainda que não soubessem de nada

Ainda assim eu seria
Uma criança indecisa
Entre o mar e a jangada.











105

Um dia, enquanto eu estava de férias do trabalho, fui sozinho até o cemitério procurar o túmulo de um amigo, fim de tarde de inverno e fiquei andando por aqueles corredores estreitos, encontrei o túmulo de uma menina que havia morrido no mesmo ano em que eu nasci, pouco antes de completar três anos, era de capricórnio e tinha cabelos loiros cacheados, o lugar estava descuidado, com plantas secas, mortas e tijolo aparente, acabei não encontrando o tumulo do meu amigo.

NA RUA ONDE EU MORO

Na rua onde eu moro
Não tenho vizinhos
Nem pássaros cantam
Nem brincam meninos

Na rua onde eu moro
Não há muros de concreto
Nem casas bonitas
Ninguém passa perto

Na rua onde eu moro
Fecharam a praça
Foram-se os pombos
E o inverno não passa

Na rua onde eu moro
Não vejo ninguém
A noite não noto
Nem o dia também

Na rua onde eu moro
Não tem o seu nome
E tudo o que vem
Desce e some.




106

Um filme caseiro (não lembro o nome ou se tinha um nome) imagens em três cores, sem som, muito sombrio, triste e confuso, uma linha de trem passando ininterruptamente com personagens e objetos sobrepostos.

O LAMENTO DOS ANJOS

Mar de outono
Árvore seca
Anão de jardim
Enforca-se sonhador
Vento que grita
Voz infinita
Névoa cinza
Flores que já se foram
Silêncio avisto
Céu encoberto
Luz enterrada
Escuridão
Casas fechadas
E abandonadas
Ruas desertas
Lápides destruídas.
















107

Sozinho, voltando de um bar, eu não tinha noção de que horas eram, passei na casa da namorada de um amigo, havia uma luz azul, fraca na janela do quarto. O portão era baixo, bati de leve na persiana de madeira, ela ainda estava acordada, a t.v ligada, muito simpática e tudo. Ficamos na escada conversando enquanto ela fumava, perguntou se eu queria uma cerveja. Aceitei. Olhei no relógio de parede e vi que já passavam das 3 da manhã, mas percebi que ainda não era muito tarde quando ela voltou da cozinha com o mesmo sorriso simpático e duas latas de cerveja, uma para mim e outra para ela.

FIM DE TARDE

Eu que falei que te amava por me sentir só
Sem o amor de ninguém pra te dar e menti
Eu que já fui comandante e já fui tripulante
De um barco ancorado na beira do cai
Eu que sonhei acordado, que fiquei espantado
E quase cai quando acordei
Eu que já fui bom menino, descobri tudo sozinho
Lendo bilhetes de alguém
Vou construir minha vela, inventar coisas belas e partir
Vou escrever na areia e remar o meu poema
Por aí
Eu que fugia da escola pra dar uma bola e continuar
Eu que pedia conselhos para o rosto do espelho
Que nunca aprendeu e nem soube explicar
Eu que te olhava nos olhos fugindo do mundo
Batendo na sua porta às três da manhã
Eu que já fui o contrário, um cadeado no armário
E agora eu sei como é engraçado não ter nada mais o que esconder
Eu que já dei minha vida, mas nem bem sabia
O que na verdade valia participar
Porque tudo isso é um jogo
Um jogo no qual
Ninguém nunca ganhou nem podia ganhar.




108

Uma amiga que passava no meu trabalho algumas vezes, sempre no fim da tarde. Ficávamos conversando perto de um canteiro com árvores e flores até anoitecer e então ela voltava para a sua casa, para a sua filha, marido ou sei lá o quê.

UMA CARTA PARA VIVIAN

Quando as noites se tornarem chatas demais
Para notar as estrelas
Quando o dia se arrastar tão lento
Como um carro a perder-se no horizonte
Quando as flores perderem a graça
E todo o brilho escapar da primavera
Quando o sorriso de um homem perder o seu encanto
E todas as borboletas, pássaros, abelhas
Voarem para longe
Tão longe que jamais consiga alcança-los novamente
Quando tudo isso de uma só vez acontecer
Eu vou estar te esperando
Com a luz de um abraço incontido no peito
E toda alegria que couber em minha alma.

















109
Pouco antes de terminar as férias de janeiro, longe do barulho da cidade, ouvindo o som das águas de um rio próximo, crianças brincando, sujas de terra e com grama nos cabelos, de um jeito natural e bonito.

REAL VALOR

O importante é o instante exato
É o momento oportuno
É o prazer extremo
É o sorriso espontâneo
É a vitória conquistada
É a vida vivida
É a simplicidade
O importante é o brilho dos olhos
É o fogo da alma
É a dupla união
É a palavra sincera
É o silêncio do sono
É a estrada comprida
Crianças brincando
O importante é gente cantando
É o amor sentido
É a compaixão automática
É o impulso para a felicidade
É o espírito de aventura
É a sopa quente
A água fresca
O beijo estalado
O importante é a carta do amigo
É a lambida do cachorro
As férias merecidas
É o talento nato
É a paciência de Jó
Uma praça tranqüila




110

Um livro de capa grossa
Uma história bem contada
É uma saia rendada
É uma música qualquer
Que a gente sempre ouvia
E sem saber já sabia
Que o importante era mesmo
Viver.






























111

De malas prontas para uma viajem de seis horas até uma cidade do interior, faltavam uns 40 minutos ainda para o meu ônibus sair. Fiquei na plataforma acima, onde tinham umas lanchonetes. Peguei duas latas de cerveja e me sentei em um degrau que se estendia de ponta a ponta por toda a rodoviária, ao meu lado um japonês lendo John Fante, do outro lado um casal. Eu estava indo encontrar uma menina. Ainda tinha algum tempo enquanto as pessoas passavam apressadas e bucólicas de um lado para o outro com tristes malas enormes e rasgadas e crianças, milhares delas olhando com atenção para todos os lados.

AMÔNIA

A vida fria desconfia
Já não para
Nem pede pra passar
A chuva rubra cai pesada
Ao fardo
Do nosso pesar
O que era quente
É esquecido
Dentro de um congelador
A epidemia e a fobia
Incitam-nos
Ao falso amor
O sonho cai
Vai despencando
Sem pressa nem cerimônia
Somo como crianças desiludidas
Nas ruas
Cheirando amônia.








112
Esperava por um telefonema qualquer e acabei pegando no sono. Havia folheado a parte de esportes de um jornal do dia anterior e quando acordei as folhas estavam espalhadas no canto da cama. Já era de noite, fui até a secretária, nenhum recado, nenhuma chamada. Nada. 10:15 Saturday Night.

CASAS DECADENTES

O dia silencia triste
A hora que suspende agora
Num soluço
As nuvens choram no céu
Quatro paredes que se encolhem
As estrelas que não querem ser olhadas
Velhos são os meus sonhos descrentes
Frágeis, como casas decadentes
O dia foi-se inútil
Trôpego como um bêbado velho e abandonado
Um fruto pequeno e apodrecido
Longe demais para ser notado
Carne, osso e concreto misturam-se
Chocam-se, agridem-se, machucam-se
No dia triste que silencia
Silencia a muda gritaria
Das nossas lutas individuais
Coisas que não se esperarão mais
Nunca mais.












113

Um casal de velhos caminhando de mãos dadas por uma das calçadas perto da praça. Sábado de manhã, eu esperava no ponto, pelo ônibus. A idéia de envelhecer um dia me despertando medo, às vezes. Mas, até que poderia ser uma coisa boa, se soubesse como levar.

REFLEXÃO

Se escoasse da minha alma, sentimento
Se dissipasse da minha mente, esperança
O que seria da minha existência
Além de nobre e impetuosa decadência?

Se apagasse do passado teu sorriso
Se inundasse em sujas águas tuas palavras
O que seria de nossas vidas
Além de duas tristes almas corrompidas?

Se acabasse de repente o meu ímpeto
E se quebrasse em dura queda, minha vontade
O que seriam dos meus sonhos verdadeiros
Além de poucos, rotos, corriqueiros?

Se diluísse em amargas lágrimas nosso presente
Se evaporassem inutilmente as nossas flores
O que seria do que sente em teu peito
Além do fardo que lamento ao nosso leito?












114

Uma rua estreita e sem graça passando praticamente pelo bairro todo, às vezes eu pegava essa rua em busca do burburinho do centro comercial. Um longo e tedioso caminho, principalmente aos domingos, do lado direito havia enormes balcões comerciais com fachadas desgastadas, descascadas e emboloradas, do lado esquerdo prédios pequenos com sacadas. Uma janela aberta, um quarto, um pôster ou quadro de Rembrandt na parede.

ESTANTES DE CONCRETO

Adormece
Mente que entorpece
Entre enxofre & gasolina
Acetona & insulina
Adormece

Adormece e esquece
A panela no fogo
Deixa queimar
Deixa a fumaça subir pelas paredes
Entre grades e redes
Adormece

Adormece que o galo canta
Que o dia acorda
Que a luz desperta
Sê alerta
E depois
Adormece

Sonhos flutuantes
Pairam nas estantes de concreto

Apagam-se as janelas
Nenhuma é tão bela




115

Quanto nosso ideais

Postos de lado
Adormeceram eternizados
Nas estantes de concreto.

































116
Uma brincadeira com as iniciais do nome de uma amiga, ela havia me mandado tantas cartas e tantos postais diferentes e poesias de todos os tipos o ano inteiro. Escrevi isso e acho que foi tudo o que havia dentro daquela carta.

UM POEMA PARA FÁTIMA

Flui rio, flui, carrega-me c´a tua eternidade
Além, muito além das incertezas do tempo
Tira-me deste absurdo limitado do espaço
Inspira-me a alma com a mansidão silenciosa do teu refluir
Me deixe apenas na companhia dos amigos, de uma garrafa de vinho
Alimento os meus anseios com a mais pura poesia
Flui rio, flui, rio da imensidão, rio de águas limpas
Algoz pesadelo, desaba falecido
Tirana agonia que se esvai, desaparece
Imerge em tuas águas e nelas inexistem
Mostra-me o outro lado das tuas margens
Até que o dia amanheça e eu te esqueça outra vez.




















117
No pátio da escola esperando até que tocasse o sinal do fim do intervalo. Para pular um portão que dava para o estacionamento. Estava com o meu caderno despedaçado, um girassol na capa. Escrevi a lápis debaixo do sol.

PARTIR

Eu quero partir
Porque o sol anda tão sem graça
Eu quero partir
Porque menina, você não passa
Eu quero partir
E acabar com essa dor

Eu quero partir
Dormir com outros anjos
Eu quero partir
Dos meus mapas astrais
Eu quero partir
Não agüento mais

Quero porque quero
E insisto em partir
Vou e não volto
Não chorem por mim
Espero um dia
Ao mundo dizer: nada mais

Quero partir, eu quero
Que termine a canção
Que salta em soluços
Que bate no chão
Essas notas tão tristes
Que ecoam de dentro de mim.





118
Eu e um amigo em cima de um pé de jabuticaba atacados pela larica, subimos o mais alto possível até que os galhos envergassem como se fossem desabar. Era fim de tarde e chegou uma hora em que não dava para ver mais nada. Tínhamos uma razoável estrada de terra pela frente morro acima, até chegarmos no asfalto onde deveríamos pegar o ônibus as 7 da noite em ponto. Eu me sentia triste, vazio e nostálgico.

A TARDE

E o dia foi embora
Foi passando lá de fora
De vagar foi-se o dia
Levando-me o que eu não via
E o dia já passou
Só eu que nunca vou
Era bom imaginar
Vir fingir, fazer sonhar
Tentar não esquecer
O que o dia fez-me ver
Só que agora
O dia foi embora
Lá pras bandas de um outro lugar
E eu aqui a me lembrar
Que o dia já passou
Só eu que nunca vou.













119

Palavras, palavras, palavras. Álcool consumido dentro de um minúsculo apartamento, alucinações com paredes e tintas derretendo. Dia cinza de abril. Longo domingo silencioso.

DOMINGO DE PÁSCOA

O braço pende
A porta pede
Pra abrir
A lua cala
Na mesa a sala
Vai cair
O sol dissolve
Não devolve
O seu olhar
O dia brilha
E a nossa ilha
Parece naufragar
O vento bate
Um sapo late
No quintal
A ponta queima
E a gente teima
Que ainda é Natal.














120
Eu costumava ficar na casa de uma namorada, dormia na cama dela que cheirava a talco. Nessa época eu andava ligado em livros sobre meditação e técnicas de projeção astral, frequentemente me pegava como se estivesse flutuando, um ou dois metros acima da cama bem no meio do sono, mas eu nunca olhava para trás ou para baixo. Um dia resolvi ir um pouco mais longe e passando pela sala e pela cozinha cheguei até a porta de um outro quarto. Tive medo de voltar e me encontrar dormindo na cama. Voltei de costas, não sei como. Eu ou a minha consciência. O dia estava amanhecendo.

ONTEM À NOITE

Ontem sonhei que me via
Deitado na cama vazia
Meu rosto refletia no espelho
Tive medo de vê-lo

Ontem sonhei que escutava
A voz de alguém que falava
Chamando baixinho o meu nome:
Acorda desse sono em que dorme!
Acorda desse sono que não é sono!
Acorda desse sono medonho!

Ontem sonhei pesadelo
Tive medo de vê-lo
De vê-lo na cama vazia
O vazio que deitado dormia.











121

Com um amigo, rodando de carro pela cidade. Noite de sexta, procurávamos um bar ainda aberto. Havia essa carta, um rascunho em folha de caderno dentro do porta-luvas. Ele estava lendo enquanto eu dirigia. Sentia-me terrivelmente triste e sozinho.

PARA ÉRIKA

Um dia eu sonhei que havia alguém
Alguém que estava me falando
Que um sonho só valia quando
Quando não estamos sozinhos
Um dia, só um dia, eu sonhei
Sonhei e desse sonho fiz minha vida
Vida que já me é tão querida
Por te encontrar no caminho
Um dia eu sonhei e acordei assustado
Pensava que o amor havia acabado
Mas que nada, eu é que não sabia
Que nunca acaba o que se sente na alma
Um dia
Sai assustado, sufocado, de casa
Meu corpo se difundia na alma
E minha alma se convertia em brasa
Correndo, fui de encontro ao mundo
Chamando o teu nome que até hoje eu chamo
Te amo
E mesmo que ninguém percebesse
Que ninguém desconfiasse
Mesmo que todos no mundo duvidassem
Ainda assim eu não deixaria de amar, por amar
Em um único dia
E foi em um dia qualquer como hoje que sonhei te encontrar
E o diabo com um sorriso falso veio me avisar:
- Não acredite no amor que sentes, é fruto da sua mente!




122

Fiquei horas e mais horas pensando assustado
E na incerteza do amor, cheguei a acreditar no diabo
Cheguei a acreditar na dor
Mas, de repente, assim do nada você apareceu na minha frente
E todas as coisas cinzas ficaram diferentes
O céu azul com seus pássaros, cantava
A arei da praia junto ao mar cintilava
E o sol que talvez sorrisse, foi ele quem me disse:
- Vai de encontro à vida, que nenhuma história de amor é perdida!
- Sufoca com um sorriso os prantos da sua alma!
Anjos em festa desceram do céu
E havia em seus lábios um gosto de mel
De flores que eu jamais conheceria
Tudo isso em um único dia
O dia em que te tive em meus braços
Laços de um encontro quase perfeito
Não fossem esses laços do nada, desfeitos
Mas ainda me lembro do dia em que sonhei
De um sonho em que te tive
Em um sono em que te amei
E ainda quem sabe, sonho
E ainda quem sabe, sinto
Te amo.















123

Na época da faculdade eu fazia um fanzine artesanal chamado Ta-Tum, por causa do Art Tatum, o que, obviamente não tinha muito a ver, uma vez que eu não escrevia sobre música, muito menos sobre jazz. Gostava da maneira como o nome soava embora algumas pessoas pronunciassem tatúm, tatoo ou tatu...escrevia sobre coisas que eu pensava, critica social e quadrinhos rabiscados, tirava mirradas trinta e poucas cópias e distribuía aleatoriamente, até que comecei a achar muito idiota da minha parte, ficar divulgando aquilo para menininhas na fila do cachorro quente, preocupadas demais com a chuva que molhava seus cabelos.

PRANTO QUE ALIMENTO

Chove, e fora a chuva nada se move
Nada se fala, nada se ouve
Houve
Houve um tempo em que nada se perdia
Mas era dia, agora é noite, agora chove
Chove tanto que nossa imensa alma ressecada pelo orgulho ressentido
Quase se molha
Já é hora
Já é hora de ir embora
Que demora pra passar o vento que invento e transformo em furacão
O vazio, o silencio, a não-emoção
A chuva aumenta e você também alimenta e sua angustia
Lastimas faíscam no céu amorfo
Tenho saudade da vontade de querer esquecer o sol
O sol não passa de um pedaço de algodão mergulhado em formol
Chove
Chove como se Deus chorasse
Chove como se Deus nos contasse
Que nossos corações quase já não batem
Do sorriso só o que resta é um fotografia apagada, jogada, esquecida
Lá nos quartos que se chamam vida
Flores de plástico e anjos de gesso no jardim do dia que era alegria




124

Chove
Tenho vontade de sair correndo
Deus deve estar me vendo
Olhando-me como quem diz: - O quê foi que eu fiz?
- O quê foi que eu fiz pra chover tanto?
Pranto que alimento
A as nuvens são como sonhos abandonados.































125
Um pássaro cantando na janela, manhã quente de quarta-feira, seis e pouco ainda. Viro-me para o outro lado da cama, ainda me lembro do sonho que tivera com lugares paradisíacos e pessoas que eu não conhecia. As ruas estavam agitadas e barulhentas.

O DIA

O dia passa lento
O pássaro que assobia
Ao passado silencia
Eu não quero acordar
O dia está presente
Estátuas tão contentes
Um dia diferente
Talvez chegue amanhã
O dia que se arrasta
Por todo o longo dia
Adentra a noite fria
Não me deixa mais sonhar
O dia vem e brilha
Esse brilho que arrepia
Ao véu que me espia
Na aurora da manhã.















126

Poemas de fim de tarde, ócio e preguiça, carros apressados, poluição e pessoas cabisbaixas desfilando na avenida das vitrines imaginarias & fachadas de mega-corporações. Caras de paletó e gravata em carros pretos. Chuva fina.

UM POEMA DE OUTONO

O dia cinza me abraça congelando
As folhas caem em silêncio anunciando
Que nada do que lembro voltará mais uma vez

A angústia se espalha com o vento
Perdem-se infinitos os sorrisos que sustento
Esvaem-se impiedosos no vazio triste das ruas

O vazio da minha alma é uma sombra no escuro
O passado inexiste enterrado no futuro
E o presente é só um momento que tento esquecer

Minhas palavras todas são ecos retorcidos
Pelos meus sonhos que passaram encolhidos
No pálido outono sufocante

As crianças brincam envelhecidas
Todas as portas agora são portas de saídas
Enegrecidas pelo vento que desgasta

Meu coração é corroído na tempestade
Que impiedosa afoga toda minha vontade
Que um dia, algum tempo existiu.









127

Na casa de um amigo assistindo “A Vida é Bela”, o filme acabou bem na hora da ultima aula, eu havia desistido um mês antes, mas aparecia na porta da escola de vez em quando para ver essa menina, desci a rua correndo e todos aqueles estudantes e gente que eu conhecia. Alcancei-a quase na entrada da estação, na última rua e fomos conversando. Ela usava aliança e tinha rosto e cabelo de anjo, uma pintura de Goya ou Rubens. Um desperdício de qualquer maneira, no meio daquelas ruas apagadas e de todos aqueles muros pichados.

NÃO TENHO PRESSA, NÃO TENHO PRESSA (PARA CIDA)

Ando a toa
À beça
Mil voltas
Não tenho pressa, não tenho pressa...
Sonho
E sonho contigo
Te chamo
Em silêncio e segredo
Te amo...
Já não me importa
A distancia, se nos separa
A diferença, se é que atrapalha
Já não me importa...
O que me importa
É o que eu sinto por você
É o que floresce
Cresce
Faz-me viver,
Todo o resto é besteira
É coisa passageira
E não me interessa,
Te espero

Não tenho pressa, não tenho pressa.




128

Eu tinha um amigo que morava sozinho em um sobrado de quatro cômodos, a casa era um verdadeiro antro, jornais do mês inteiro jogados no chão da garagem, embolorados pela água da chuva, matos crescendo entre os degraus, o tapete e o sofá cheirando a maconha, latas vazia de cerveja transformadas em cinzeiros. Uma noite eu virei num único gole um resto de cerveja quente com cinza de cigarro. Confundi com a minha lata que estava na escada. Quase vomitei no banheiro e por pouco não sujo as solas dos sapatos porque alguém já havia vomitado antes no chão da cozinha.

NA HORA DE ACORDAR

Pássaro que canta
Num sonho em que se espanta
Efêmero prazer
Que a noite vem tecer
Fria e calada
Na alma embriagada
Que voa em imensa altura
Que tateia, que procura
E se afasta lamentando
O pássaro cantando
Canto que é bonito
Soar de um doce grito
Leve desespero
Arrasta-se o ano inteiro
Qual o corpo que tem sede
Enrola-se na rede
Que a dura noite tece
Depois desaparece
E fica o silêncio
Vazio vasto, imenso
E o pássaro se ausenta
E o sonho se arrebenta
Na hora de acordar.




129

Baseado em fatos reais, uma letra de música ou alguma coisa pra ser cantada, sobre um acidente automobilístico em uma estrada do interior, seis mortos espalhados pelo asfalto em uma noite quente no verão de 86.

AO LADO DA MINHA CAMA

Ainda tenho o pedaço da sua caixa craniana
Dentro de um aquário ao lado da minha cama
Foi a única coisa sua que me restou
Quando o carro na curva da estrada derrapou
E até que é um pedaço de crânio bem bonitinho
Tem um monte de cabelinho
A massa encefálica no calor da estrada derreteu
Por isso eu acho que você já me esqueceu
Mas eu nunca me esquecerei de você
Pois sempre que me deito
Tenho o pedaço da sua caixa craniana para ver
E fico feliz por ter um pouco de você aqui comigo
E se não tenho as outras partes já nem ligo
Assim é a minha vida
Eu e a sua querida
Caixa craniana ao lado da minha cama.
















130

Ela me entregou todos os poemas e desenhos que eu havia feito, e também uma revista com letras de músicas do Bob Dylan. Era a nossa despedida. O último dia. Eu usava uma blusa de Freddy Krueger e voltei logo para o carro. No rádio tocava R.E.M. A estrada ensolarada prometia aventuras diferentes nos quilômetros seguintes. It´s the end of the world as we know this, but i fell fine, i fell fine.

A ÚLTIMA CARTA

A febre nunca passa
Já não tem nenhuma graça
Teu sorriso inventado
Teu abraço congelado
Necessito da tua ausência
O teu beijo é decadência
Causa-me triste espanto
Calo-me, já não canto
Ando por ruas vazias
Onde passeávamos no fim do dia
O vento é tão sereno
Eu me sinto tão pequeno
Perco-me em pensamentos
Agonizam sentimentos
E a febre nunca passa
Não há nada que me faça
Esboçar-lhe um sorriso
Teu amor é prejuízo
É a mais pura falsidade
Que me mata a saudade
De tudo o que eu sinto por você.








131

Uma imensa sala de jantar branca com janelas sem cortinas e o sol batendo direto nas paredes. Era véspera de ano novo e eu estava sozinho ouvindo um disco do Pink Floyd, Julia Dream e essas coisas, pensando na irmã de um amigo, que andava acordando no meio da noite e ficava em claro lendo passagens da Bíblia em voz alta.

O SONHO DE JÚLIA

Julia sonhou que era estrela
Julia sonhou que era areia
Julia sonhou um poema

Seus olhos eram dois diamantes
Brilhando no alto, distantes
Em um céu verde, vermelho e amarelo
Com nuvens de cogumelo

Julia sonhou que era planta
Julia sonhou que era santa
Julia sonhou

O sonho de anjos celestiais
Hoje Julia sorri e canta
Lembrando de quando foi santa
De quando foi estrela

É teu este poema
E de tantos outros anjos celestiais
Julia não sonha mais.









132
Conversando com uma amiga sobre relacionamentos no vazio estacionamento de um supermercado quase falido. Falávamos sobre relacionamentos fracassados e todo tipo de coisa que por um motivo ou por outro acabou não dando certo.

DEBUTE

O amor se contorce
Em cinco descompassos
E desanda
Desaba
Abandona o coração
E o coração já não bate
Parte
Quebra
Despedaça-se na queda
À despedida do amor
O amor vai-se, caminhando
Trôpego, sem rumo
E depois não é mais visto
Não é mais ouvido ou sentido
Já não é mais amor
E o que fica é a memória
De um passado empoeirado
E um coração despedaçado
Espalhado pelo chão.












133

São Paulo e suas casas noturnas com pisos de madeira e corredores estreitos em movimentadas ruas com prostitutas, traficantes e gente de todo tipo, pessoas com gostos e maneiras diferentes tanto quando um árabe e um judeu sentados em uma mesma mesa de bar, dividindo a conta da cerveja.

TELHADO DE LENÇOL

Poste solitário
Dentro do armário
Suave letargia
Fazendo companhia
Colher queimada
Debaixo da escada
Velas & banheiro
Na esquina o espelho
Espinho é vidraça
Cortina de fumaça
Na rua congelada
É torpe a madrugada
Cinzas & estilhaços
Bêbados descalços
Lua ao céu, insana
Debaixo da cama
No final do corredor
Orgasmo & pavor.













134
Feriado prolongado e a praia entupida de gente, guarda-sol e barulho, quase impossível andar na areia, por isso preferi ficar sentado em um muro distante, e mesmo longe eu continuava com a impressão de estar em alguma rua do centro da cidade em plena segunda-feira. Estava pensando, lembrando da época em que eu ia com a minha mãe até a casa do meu avó que ficava na beira de uma estrada, bem no meio de um pasto. Lembrava dos faróis dos ônibus e caminhões iluminado a estrada de noite, do barulho que faziam e de como aquilo tudo me fascinava.

JUVENTUDE PACATA

Andam falando de sonhos que eu não acredito
Entopem-se de drogas baratas de fácil acesso
Cursam publicidade, direito, gestão e engenharia
Nadam em praias lotadas com ruas fechadas de melancolia
Assistem programas patéticos de falsos atores
Lêem revistas furadas de gente famosa
Compras roupas de grife da ultima moda
Cantam canções fabricadas em latas de lixo
Tateiam na poluição de um mundo sem graça
Cercados por cercas e carros e computadores
As telhas de vidro com a chuva ficaram partidas
Estão olhando para baixo para o fundo do poço
As gotas de chuva que caem batem em meu rosto
Cuspir na sua cara não vai te fazer acordar
O caminho é seguro porque foi o que lhes disseram
E siga, só olhe pra frente, para a sua apatia
Que mata e sepulta a loucura que nos libertava
O pó da sua cabeça me dá alergia
Dez passos e saia correndo que eu não agüento
Ver morto um ideal que nem bem nasceu
Nas portas fechadas das escolas e dos presídios
Das casas, dos clubes, do mundo, ergueu-se a muralha
Dos mórbidos dementes que vagam na ignorância




135

De falsos conceitos, respeitos, valores e vidas
Por isso que eu canto agora debaixo da chuva
Para quem estiver aí dentro com medo da perca
Juventude pacata
Juventude pacata
Juventude pacata.
































136
Depois do ano novo a árvore de natal seca, morta, semi-tombada nos fundos do quintal, havia uma caixa de papelão com algumas bolinhas quebradas dentro, vidro vermelho e branco no meio do quintal, no meio da chuva.

UM MANIFESTO AGNÓSTICO

Deus
O que é que você faz ai em cima?
Porque é que você não me anima?
Deus...

Me explica,
Porque é que você nunca fala?
Que é o teu silêncio que tanto me atrapalha,
Deus...

Agora que,
Encontrei um tempo para poder ficar contigo
Juro que pensava ser teu amigo,
Deus...

Me fala,
Porque é que você foi embora?
Me deixando sozinho aqui fora?
Deus...

Será que,
As minhas preces não foram direitas?
As minhas vontades não foram aceitas?
Deus...

A única coisa que eu realmente queria
Era ao menos saber se eu poderia
Mesmo não sendo perfeito




137

Aprender a falar de um jeito
De um jeito que você me escutasse
Pelo menos dessa vez,
Meu Deus...

Então me responde,
Aonde é que você se esconde?
Onde?






























138

Uma breve paixão por uma psicóloga, mas a coisa foi tão passageira que eu não consegui ir além dessas linhas. Não deu um mês e eu não fui mais nas consultas. Cansei de ficar fazendo desenhos, isso e aquilo e de ficar falando sobre a monotonia da minha vida e o tédio dos meus sentimentos.

AURORA BOREAL

Eu
Caçador de ilusões perdidas
Viajante de ruas sem saídas

Eu
Pescador eterno do deserto
Mensageiro do sono desperto

Eu
Inventor de sonhos impossíveis
Palhaço de piadas horríveis

Eu
Acordo

Acordo ao cantar dos pássaros às flores que partiram
Que um dia foram belas, mas se foram
E que nas noites das mais tristes boemias
Viram dias que secaram, quase mornos.












139

Ela estava parada, em pé, perto de um banco na rodoviária, enquanto o ônibus afastava-se em direção a outro canto do pais. Olhei pela janela enquanto ajeitava o ok-man, sentia-me mal por de certa forma estar interpretando um papel que não era o meu, por receio de chatear o dono do teatro.

O ULTIMO CANTO

Foi triste, estranho, dolorido
Ao teu amor não ter correspondido
No teu abraço havia ternura
Na minha alma, armadura
E quanto o teu beijo foi entrega
Minha emoção tornou-se cega
Fechei-me, velho, louco, corri
E do abismo, nas alturas não te vi
Nos labirintos em que me perco, te enganei
Já não sinto, eu que minto, sou ninguém
Assassinei o último cupido
E todo amor que a muito tens me esquecido
Eu agonizante, você a cura
Eu e minha alma, armadura
Choro, e o meu choro e para ti
Choro, pois dos abismos não te vi
E caio, que me perco, te enganei
E saio, que não amo mais ninguém.













140

Dentro de um ônibus olhando a paisagem verde e a estrada desenrolando-se como um filme pela janela, pensando nos últimos dias que havia passado longe de casa e a chuva caindo fina, derretendo todos os meus bonecos de neve imaginários no verão tropical.

NO FIM

Fim
Finda o lua – chora
Céu
Esconde teus deuses – na noite
Homem
Continua seguindo – teu sonho
Mundo
Espero-te sorrindo e pensando
Que se estivesse pacifico
Mesmo a calar-te
Louvaríamos a paz
E nunca mais lamentaríamos
Lamentos esses
Que se foram
Viraram lágrimas
Choro
Profunda tristeza
E eu
Eu esqueço
E eu
Eu enterro
E eu
Eu passo

E continuo
Continuo
Continuo.




141

Ela escreveu uns versos no guardanapo e me entregou, estava chorando e com as malas prontas no canto da mesa. Fiquei embaraçado e comecei a escrever alguma coisa para ela também. Havia um amigo na mesa com a gente que ficou cuidando das nossas coisas enquanto fomos no banheiro masculino e fizemos nossa festa particular de despedida e na pressa acabei me esquecendo de lhe entregar o bilhete que eu havia escrito.

BEST-SELLER

Teu rosto é poesia
Teu corpo, verso
Leio-te
Releio
Você é o meu livro de cabeceira.
























142

A velha casa de madeira mais uma vez, e aquela ponte que dava para um lugar triste no pé de uma montanha. Eu estava na janela da cozinha olhando para fora, era fim de tarde e o rádio fora de sintonia, chiando feito louco, eu esperava pelos meus amigos sem a mínima idéia do que iríamos comer na janta.

DA PEQUENA PONTE

Quase fingidas flores
Quase sempre dores
Tão pequena ponte
Ali no horizonte
Cicatrizes da alma
Quase sempre calma
Quase cinzas dias
Quase nunca alegrias
Sempre o mesmo rosto
Sempre o mesmo gosto
Quase sempre sua
Quase nunca lua
Assim, olhando a ferida
Tentando virar vida
Ali no horizonte
Da pequena ponte.














143
Conheci duas “hare krishnas” nos fundos de uma livraria, ficamos conversando por um tempo e eu prometi aparecer lá onde eles se reuniam todos os sábados, comprei uma revista com textos védicos e elas me deram incensos de sândalo de presente.

LUGARES QUE EU JÁ ESTIVE

Eu
Passando pelo tempo
Canto
Canto para o vento
Tanto
Tanto que não quero mais parar
Eu
Invento uma história
Vivo
Vivo desse agora
Sem motivo
E sem razão nenhuma
Paro
Paro
E quase me distraio
Com o pensamento distante
Nada de importante
Uma ponte cruzando um rio
Um botão no meio dos espinhos
Deus no coração de todos os homens do mundo.











144

No centro da cidade procurando por um bar com televisão, iria começar o segundo tempo de um jogo de futebol e eu planejei beber uma cerveja e assistir até o fim, antes de voltar para casa. Enfim acabei encontrando um bar com uma televisão ligada, passava programa político obrigatório. Época de eleição e toda aquela ladainha. Tempo feio e eu perdendo o jogo, o tempo.

O MANIFESTO DE UMA OVELHA ANARQUISTA

Não nasci para ser ovelha de rebanho
Sou ovelha negra
Desgarrada
Na contramão da estrada

Não estou no pasto
Estou no alto da montanha
Não como capim
Não como grama
Tomo chá de lírio

O algodão é meu
Ninguém tira
Ninguém vende
Ninguém põem a mão
Faço dele o que bem entender

Não nasci para seguir
Para ser igual
Não sou clone
Não sou Dolly
Sou o que penso
E o que penso é tudo o que me pertence

Vocês têm o direito de seguir o pastor
Por quantos caminhos quiserem




145

Assim como eu tenho o direito
De seguir o meu próprio juízo
Ainda que eu não tenha juízo algum

Portanto não me encham o saco
Nem me apontem o dedo
E se não for pedir demais
Não pastem as flores todas do caminho.






























146
Eu e os meus amigos gordos e enfadonhos sentados em volta de uma mesa em um apartamento 7x4 conversando sobre família e trabalho. Minha cabeça parecia que iria explodir, eu pensava sobre o passado, sobre a impossibilidade de voltar para os mesmos lugares, com o mesmo espírito de antes e todas aquelas mesmas pessoas agora envelhecidas.

AS COISAS QUE DEIXAMOS PARA TRÁS

Dissolve-se aspirina
Nuvens no céu de gasolina
Pássaros que voam para trás
Músicas que não se tocam mais

Homem anão pequenino
Morto no homem o menino
Dias também muito pequenos
Certeza de que nunca mais veremos

As coisas que deixamos para trás
Filmes que não se passam mais
Carros tão verdes de velhos
Ondas que levam castelos

Sonhos feitos na areia
Uma realidade nua e feia
Da beleza que não volta mais
Nas coisas que deixamos para trás

O vento é o que sopra mais saudade
Prelúdios da quase eternidade
Uma época que se perdeu
Vida que não se viveu

A curva que esconde uma estrada




147

A ponte que liga o tudo ao nada
A cama em que dormimos
Sono que não sentimos

Luz que se apaga
Na alma que divaga
Entre coisas apodrecidas
Entre impérios das não-vidas

A música da vida enfim silencia
Agoniza o sol ao fim do dia
Tudo passa em despedida
Pela porta da saída

O vento também cala
Só o silêncio é quem fala
Fala sussurrando e se desfaz
Nas coisas que deixamos para trás.




















148

Um sonho em que uma amiga me abria uma porta e passando por essa porta havia um girassol dentro de um vaso em cima de uma cadeira de palha, ela me contou coisas desconexas sobre o girassol, sobre o vaso e segurando na minha mão me levou para o alto e depois para baixo outra vez, paisagens desérticas misturadas com flores e cardumes de peixes acima das nossas cabeças.

A DESCRIÇÃO DE UM SONHO (UMA CARTA PARA FERNANDA)

O tempo despediu-se num aceno
Perdendo-se logo depois em uma densa névoa que pairava silenciosa
Cobrindo os Três Velhos Trilhos Retorcidos que haviam sido percorridos por vagões que jaziam agora, desertos e enferrujados.

A noite ergueu-se em azul-marinho como se fosse Deus a puxar-nos pela alma, infinita.

Quando te encontrei você estava sorrindo e eu me senti um pouco atraído Afinal eu andava perdido e sozinho no meio dos prédios tombados e do asfalto quente e rachado de estradas vazias

Sua voz era doce e calma como um telefonema no meio da noite
Suas mãos carregavam pétalas de flores púrpuras colhidas dos Jardins da Mente...
Lá onde Anjos alegres & loucos dançavam celebrando por todo o Bairro Enquanto flores caiam-lhe pelos cabelos que desciam como água fervente serpenteando seus ombros feitos de neve e areia branca
Teus pés estavam sujos de terra e você veio e chamou pelo meu nome
Para que eu também acordasse e ouvisse a Música e visse duas mil crianças – E cada uma delas distraídas dentro do desfile de seus próprios sonhos, cantavam.

Você disse palavras bonitas / rimadas e disse com a calma de uma certeza experimentada




149

Enquanto o brilho do sol ofuscava minha visão
Vindo direto de dentro do seu sorriso e seus olhos eram como duas luas de sal pairando,
Dessas que conversam com os poetas, boêmios e sonhadores andarilhos nas estreitas estradas que testemunham estórias incontáveis & incomuns de finais incertos.

Então fomos até o mar e você me revelou o Segredo das sereias que cantam para marinheiros e pescadores apaixonados...espíritos que contam estórias entre gargalhadas do topo das árvores mais altas de antigos campos inexplorados por trabalhadores comuns.

Senti o seu abraço pouco antes de entrar no seu Imenso Mundo Colorido – Percorrido por santos e homens de bom coração
Que se sentavam juntos na mesa para o café.

Eu te apontei uma estrela vermelha se aproximando
Enquanto colhíamos frutos de árvores de chocolate e vinho tinto.

Passeamos por estreitas alamedas contornadas por pedras pintadas de branco E brincamos na arena da minha vida estendida – Fazendo cócegas no monge que meditava impassível
Contamos todos os nossos segredos com um megafone para os Quatro Ventos que também passaram, sopraram e sorriram.

Corremos com uma euforia incontida e inexplicável vinda do âmago dos nossos desejos todos realizados
Então eu te vi pela primeira vez dentro do meu Sonho
Você me olhou de volta e me puxou pelo braço quando todos os nossos sentidos misturaram-se num único Sonho onde sapos (e grilos) recebiam e abençoavam os Deuses da Noite Infinita.

Você apontou na direção de cem mil girassóis espalhados por um campo (como se fosse uma pintura de Van Gogh) a beira de uma estrada deserta que




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abraçava o mar verde / azul mesmo nas noites mais longas e escuras que pareciam frias e feitas de pedra.

Mergulhamos nas Piscinas da Incerteza e sentimos sua água quente e calma
E então percebemos que nossas mentes nunca mais existiriam
Depois de termos conversado na esquina sob a luz de um poste solitário sobre os livros que planejávamos escrever.

Acendemos velas e rezamos nossas rezas improvisadas, misturadas com folclore, ouvindo o choro de outros tantos Anjos quando as montanhas todas ficaram baixas.

Seus olhos brilhavam, cintilavam
Como luzes de uma cidade distante que revela casais apaixonados, sentados e abraçados em bancos brancos de madeira trabalhada
Em seus beijos que pareciam nunca ter fim.

Nossos pés tocaram a grama, a areia e o cimento
Depois deitamos em cima dos telhados e vimos que as pessoas dormiam espremidas dentro de sonhos curtos onde não havia música, nem poetas, nem flores.

Contamos as estrelas e as pilhas de portas e cercas amontoadas & esquecidas até que perdemos a conta
Camas vazias espalhadas em campos abertos debaixo do sol e colchões verdes de limo empilhados.

E te vi olhando para o céu infinito e sorrindo
Quando vieram também os pássaros
O outono em forma de acordes desafinados e a primavera de tudo o que não havia sido correspondido passaram num imenso barco cinza e vermelho deslizando lá em cima por entre tormentas, estrelas e cometas e dentro desse barco estavam guardados também os sonhos de todas as pessoas do mundo.





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Então ele deslizou e mergulhou dentro das nossas cabeças e eu pude desejar enfim, do fundo da minha alma
Nunca mais acordar desse sono absurdo, de amor e loucura.



































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INDICE


Uma carta..........................................................................................................07
Ode à preguiça..................................................................................................09
Imaginando romance no dia dos mortos............................................................10
De um trem........................................................................................................12
Noites insólitas...................................................................................................13
Girassóis............................................................................................................14
Linhas retas.......................................................................................................15
Para Carine........................................................................................................16
Apego.................................................................................................................18
Poema inebriado................................................................................................19
Pé de chinelo.....................................................................................................20
Praia deserta......................................................................................................21
Sonhos de porcelana.........................................................................................22
Encontro.............................................................................................................23
Percepção..........................................................................................................24
Sorrir..................................................................................................................25
O sopro do vento...............................................................................................26
O ultimo dia........................................................................................................28
Epílogo...............................................................................................................30
Amor bandido.....................................................................................................32
Angústia fria.......................................................................................................33
Ela dançava uma valsa......................................................................................35
Trauma...............................................................................................................36
Dobrando a esquina...........................................................................................38
Nas paredes.......................................................................................................39
Só, pra você.......................................................................................................41
Sobre as flores...................................................................................................42
A despedida.......................................................................................................43
Fumaça da minha cabeça..................................................................................44
Falando de coisas mortas..................................................................................45
Você...................................................................................................................46




153

O céu do fim a ponta..........................................................................................47
Palavras na areia...............................................................................................49
Me leva..............................................................................................................50
Unha encravada.................................................................................................51
Falando de amor................................................................................................53
Por te querer mais.............................................................................................54
Minhas feridas....................................................................................................55
Coração de aço..................................................................................................56
Auto-retrato........................................................................................................57
Um sopro...........................................................................................................58
O manifesto do silêncio absoluto.......................................................................59
Maria Joana.......................................................................................................61
A despedida do amor.........................................................................................62
Tédio..................................................................................................................63
Na estrada.........................................................................................................64
Um beijo na boca de Deus.................................................................................65
Metal pesado.....................................................................................................69
O sono de Ingrid................................................................................................70
Dia de agonia.....................................................................................................72
Confissão...........................................................................................................74
Desencontro.......................................................................................................75
São Paulo..........................................................................................................76
Paradoxo............................................................................................................77
Daniela...............................................................................................................78
Fogo...................................................................................................................79
Morte..................................................................................................................80
Na beira do mar.................................................................................................81
O rosto...............................................................................................................83
Bagagem, sonho e fumo....................................................................................84
Sozinho..............................................................................................................85
Um feito do feto..................................................................................................86
Cinza, preto e branco.........................................................................................87
Um sonho...........................................................................................................88
Para um amor que partiu...................................................................................89




154

Um grito.............................................................................................................90
Atma...................................................................................................................92
Medo..................................................................................................................94
Deus Papai Noel................................................................................................95
Out-Door............................................................................................................96
A morte da entrega............................................................................................97
Vida indigesta....................................................................................................98
Sobre o amor...................................................................................................100
Concreto..........................................................................................................102
Prelúdio............................................................................................................103
Uma noite com você........................................................................................104
O mar a e jangada...........................................................................................105
A rua onde eu moro.........................................................................................106
O lamento dos anjos........................................................................................107
Fim de tarde.....................................................................................................108
Uma carta para Vivian.....................................................................................109
Real valor.........................................................................................................110
Amônia.............................................................................................................112
Casas decadentes...........................................................................................113
Reflexão...........................................................................................................114
Estantes de concreto.......................................................................................115
Um poema para Fátima...................................................................................117
Partir................................................................................................................118
A tarde.............................................................................................................119
Domingo de páscoa.........................................................................................120
Ontem a noite..................................................................................................121
Para Érika........................................................................................................122
Pranto que alimento.........................................................................................124
O dia................................................................................................................126
Um poema de outono......................................................................................127
Não tenho pressa, não tenho pressa...............................................................128
Na hora de acordar..........................................................................................129
Ao lado da minha cama...................................................................................130
A última carta...................................................................................................131




155

O sonho de Júlia..............................................................................................132
A despedida do amor II....................................................................................133
Telhados de lençol...........................................................................................134
Juventude pacata.............................................................................................135
Um manifesto agnóstico..................................................................................137
Aurora boreal...................................................................................................139
O último canto..................................................................................................140
No fim...............................................................................................................141
Best seller........................................................................................................142
Da pequena ponte...........................................................................................143
Lugares em que já estive.................................................................................144
O manifesto de uma ovelha anarquista...........................................................145
As coisas que deixamos para trás...................................................................147
A descrição de um sonho................................................................................149
























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Eu vejo você tão bonita
De saia branca de renda
Cabelo preso com fita
Fita amarela de seda

Da praia te vejo no barco
Descendo a rua, apressada
Lá longe, sumindo na estrada
Na outra margem do rio