sexta-feira, 22 de agosto de 2008

O DIA EM QUE PERDI MINHA CABEÇA

O dia em que perdi minha cabeça, ela saiu rolando rua abaixo. E os moleques logo se aglomeraram, chutando-a de um lado para o outro, e ela – coitada – parecia tão frágil, quicando entre alamedas e avenidas, passando debaixo de viadutos imundos de carros e sarjetas – indo parar bem nos pés de um mendigo, que gentilmente apanhou minha pobre cabeça perdida e colocou entre seus pertences, como se fosse um souvenir, uma lembrança, um lenço a flutuar pela janela dos seus olhos embriagados pelo abraço gelado da miséria.
- Ei, minha geração viu isso e aquilo! – eu gritava, enquanto uma garotinha fantasmagórica soprava uma flauta doce cujo som era muito ruim por sinal. E todo o tempo meu corpo sozinho, na porta de um teatro abandonado, pensava sem parar: - Serei ela ou eu? – referindo-me à minha cabeça que agora avistava centenas de milhares de movimentos caóticos, uma criança que flutuava como sonho, sons incompreensíveis soprados de sua boca contorcida, saindo por orifícios de fumaça e a tosse seca e contínua da cidade infestada. Meu corpo repousava numa cama desconhecida, encharcado pelas dúvidas e dívidas que eu tinha – tudo somando um ranço profundo percorrendo minhas verdes veias pelo sangue que jorrava do meu pescoço angustiado.
- Nossa Senhora da Aparecida – minha cabeça disse e eu não era nenhum exemplo de cristão ou coisa parecida e continuei apreciando ou tentando apreciar aquilo tudo que me era servido. Visões subconscientes misturadas com medos profundos até encontrar a coragem necessária para atravessar um lago de tranqüilidade no outro lado da rua – agora deserta.
A menina fantasmagórica era somente uma nuvem de poeira ou talvez fossem os meus medos ou o medo de alguém muito próximo ou o medo somado de todas as pessoas do mundo. O mendigo agora era minha mãe que era uma santa e sumia no meio da fumaça que eu não conseguia identificar de onde vinha. Até que o meu corpo encontrou minha cabeça, minha cabeça perdida – ou terá sido o contrário? Voltei lentamente, como voltam às lembranças sempre que escutamos certas músicas – DOWNER.
E o quarto era exatamente o mesmo quarto do passado e as miragens cujas janelas transmitiam como se fosse espetáculo e o telefone tocando, a porta semi-aberta e todo o resto que eu tive que esquecer por um minuto – o pesadelo das loucuras reais encontra o sonho passageiro das loucuras artificiais – pensei.
Sempre que escutamos certas músicas.