quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

O CARA QUE SE LEVA MUITO A SÉRIO

O cara que se leva muito a sério fica sentado na minha frente durante o almoço. Reparo que ele usa terno surrado e bigode de uma semana. Gesticula o tempo todo enquanto fala sobre o seu trabalho como vendedor de produtos plásticos numa indústria às margens de uma rodovia da qual não me lembro. Também não recordo o seu nome. Alfredo? Assis? Francisco? Pede dois ovos fritos com manteiga enquanto remexo nos bolsos da camisa só por costume. Continua falando sobre a crise do petróleo e extração de borracha da Amazônia. Na tv um programa esportivo, cujos convidados, agridem-se aos gritos de torcidas organizadas e batuques de escolas de samba e mulheres peladas. O cara que se leva muito a sério sabe se conter às vezes, embora opine sobre tudo, sua opinião é quase sempre do tipo em-cima-do-muro, parece uma encenação em carne & osso do jornal que passou antes. Antes dele pintar por aqui com sua mala encardida e seus truques conhecidos de futuros aposentados apáticos. A fila da apatia não para de crescer – penso com meus botões enquanto tento enfiar o nariz dentro do bolso da minha camisa, só para ver se dá, só para ver se cabe. A garçonete pergunta se quero algo. Sim eu quero – mas fico receoso de pedir para ela – talvez seja casada, uma esposa que se leva muito a sério, provavelmente, penso e desisto da idéia do stripe bem no alto de uma das geladeiras de cerveja, fazendo malabarismos com isqueiros que as pessoas esqueceram, enquanto o cara a minha frente esfrega uma fatia de pão no ovo do prato, come e fala de boca cheia sobre a porcentagem de negócios que conseguiu fechar até dezembro passado. passado. passado. passado. Quem se importa? Na verdade estamos todos dentro da mesma panela que fervilha de merda, quase todos no ponto para serem servidos como iscas para donos de mega corporações e políticos legitimamente eleitos pelo meu voto e pelo seu. O programa esportivo acaba com uma saraivada de tiros e entra outro programa, dessa vez policial. Olho para o cara de bigodinho ralo e cabelo empastado de gel, o cara que se leva muito a sério, terminou de comer a última fatia de pão, tem os dedos lambuzados de gordura e parece não dar a mínima para isso, continua falando e gesticulando e explicando como as coisas são. Alguém me estende um bilhete por cima do ombro direito, apanho e noto que é uma letra bem legível e feminina, como se tivesse sido escrito com muito cuidado na pontuação e tudo. É um pedido. Por favor, leia o nosso cardápio – está escrito. Olho para a garçonete e ela me devolve um olhar tímido. Levanto da mesa e deixo o cara lá falando sozinho, ele vira para a parede de azulejos azuis e começa a inspeciona-la com uma lupa ou qualquer coisa dessas. Apanho um papel. Não, obrigado – escrevo e entrego para a garçonete. Então saio e as luz fraca de um sol capenga do inverno do meio-dia me apanha em cheio pelas costas e por um minuto parece que mais ninguém nota isso. Então tiro a camisa e entrego para um menino parado na esquina e que obviamente não entende nada. – Que se passa? Tiro a camiseta enquanto subo mais ainda a avenida, o sol bate com mais força e viro o meu rosto na sua direção e caminho na sua direção e esqueço de todo o resto, e como se fosse um tolo, equilibro-me por cima de uma mureta, sem destino certo, sentindo como se estivesse deixando para trás um caminhão de cobranças inúteis e a certeza de que todas essas cobranças chegam para mim com o nome do destinatário errado, até mesmo quando, num incrível lance de sorte & coincidência – acertam um esquecido sobrenome meu.