quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

A MULHER DO IMPOSTOR

A primeira vez que eu a vi foi numa tarde cinzenta de outono. Algo entre outubro e novembro de 66. As ruas estavam pintadas de chuva e menos movimentadas do que de costume. Isso foi em Praga e me lembro também que eu dirigia um carro branco, rústico, de fabricação soviética. Alugado pela empresa em que eu trabalhava.
Parei de um lado da rua enquanto ela entrava em uma agência de um banco estatal do outro lado. Próximo de onde eu estava alguém colocara Rubber Soul dos Beatles para tocar, estávamos no final de 66 e esse álbum tratava-se ainda de uma novidade no lado comunista da cortina de ferro. Enquanto as músicas do Revolver insistiam em tocar dentro da minha cabeça, ela saiu do banco carregando uma discreta bolsa preta, tão pequena quanto todo o resto, pois tudo nela era pequeno, pequeno e atraente, ligeiramente misteriosa, até mesmo para um investigador de relativa experiência como eu.
Na verdade, eu era filiado a um partido anarquista com sede em Roma, na Itália. A mando do partido, eu agora fazia parte, acima de qualquer suspeita, de uma organização de extrema direita austríaca que apoiava um grupo terrorista alemão e agora planejávamos um atentado na capital da Tchecoslováquia, secretamente eu transmitia essas informações para o partido anarquista italiano, que imediatamente eram rastreadas e repassadas para um grupo comunista russo que fazia oposição aos poderosos do Kremlin e incentivava ações contra o imperialismo soviético, sobretudo na Hungria, Polônia e Tchecoslováquia. O impostor era um dissidente do governo soviético que agora trabalhava para o governo americano, plantando informações mentirosas nos meios de comunicação ocidentais, nosso objetivo era elimina-lo, ou melhor, esse era o objetivo da organização de extrema direita austríaca, da qual eu fazia parte como mero figurante, um espião movido por um interesse natural e maior na total liberdade de expressão e na implantação da anarquia em escala mundial. Evidentemente que eu não tinha nada contra o tal impostor, não era o tipo de cara com quem eu tomaria uma daquelas escuras e quentes cervejas húngaras, mas estava igualmente longe de ser um alvo em potencial dos meus ideais libertários. E no meio desse caminho de balas cruzadas entre os mais variados interesses e ideologias políticas estava essa mulher, essa que acabara de sair do banco estatal trazendo consigo uma quantia considerável em dólares para o bando que tinha o seu marido como principal líder e articulador.
Tratava-se de um jogo de paciência, um longo jogo - presumi, enquanto minha cabeça martelava Taxman outra vez. Mal sabia eu que uma inevitável aproximação da mulher de vestidos longos, chapéus parisienses e hábitos requintados, por muito pouco não acabaria em tragédia para mim e para ela, antes, é claro, que o partido anarquista mexesse suas peças no tabuleiro europeu e enviasse uma carta para o seu marido, que imediatamente voou para Miami enquanto seus camaradas eram esmagados como traidores pelos tanques comunistas de 68. No mesmo ano em que eu fui expulso da organização neonazista húngaro-germânica sob ameaça de morte, de modo que tive de ser enviado para férias por período indeterminado na costa leste africana onde passava tardes inteiras sorvendo longos goles de uma bebida típica muito doce e que lembrava vagamente a Vodka russa e uma paradisíaca vista praieira, enquanto a mulher do impostor dava incontáveis mergulhos na água e voltava logo depois, com o cabelo escorrendo, sorrindo e contando estórias loucas sobre o seu passado e os planos que agora fazíamos junto, tudo naquele lindo e quase místico sotaque Tcheco.
Enquanto minha cabeça tocava, como uma vitrola riscada. Let it Be.