quinta-feira, 25 de outubro de 2007

O CAMINHO DE CONCEPCIÓN - IV

Eu e a Tatiana fazíamos assim: procurávamos um prédio qualquer, de preferência residencial, pois esses quase nunca tinham câmera, escolhíamos sempre os mais altos e então fazíamos os preparativos para o nosso piquenique urbano. Lá pelas onze da manhã já estava tudo pronto, levávamos comida e bebida dentro das nossas mochilas. Durante todo o tempo em que o Serginho andou pelo México numas viagens místicas com um cara que eu não conhecia e o Gustavo tava cumprindo condicional em Salsido, fizemos cerca de vinte visitas aos prédios residenciais da avenida principal de Guadalupe. A Tatiana saía de manhãzinha, enquanto eu dormia e voltava horas depois, toda eufórica, me acordando – Amorzinho – ela começava – levanta, encontrei mais um. E quando ela falava isso queria dizer que ela tinha visto outra placa de aluga-se na recepção de um daqueles prédios da avenida. Então preparávamos o nosso lanchinho e corríamos até lá, afinal de contas, não tínhamos muito que fazer naquela cidade de merda e de qualquer forma, estávamos ali de passagem, por isso nossas idéias giravam em torno de aproveitar ao máximo com um custo mínimo. E teve esse prédio alto, já no final da avenida, perto da prefeitura. Vimos um apartamento para alugar no 27º andar, pelo anúncio da portaria parecia perfeito, sacada, carpete, varanda, armários e camas embutidos. Além desse apartamento vazio, havia um outro, um pouco menor, no 16º.
O porteiro parecia simpático, mostramos interesse nos imóveis, fazíamos o papel de recém casados felizes, obvio que o cara estava sozinho e não iria subir com a gente. Entregou-nos a chave do 27º e do 16º, agradecemos e subimos com as nossas mochilas. Ainda no elevador a Tatiana me agarrou e eu fiquei de olhos na câmera, havia câmera por todos os lados, então tínhamos que manter a linha para não levantar suspeita. Subimos primeiro até o 27º, o apartamento era gigantesco, ficamos pelo menos uns dez minutos olhando todos os cômodos, depois voltamos para a sala, escancarei aquela enorme porta que dava para a varanda, a vista lá de cima era fantástica, enquanto isso a Tatiana abriu as mochilas e tirou nossas coisas lá de dentro. Na véspera, talvez por pressentimento, ela tinha enrolado um baseado enorme em um papel de pão, parecia um charuto com cerca de 20 cm. Enquanto fumávamos, olhando de vez em quando a paisagem, abrimos uma garrafa de cerveja. Decidimos terminar o beck no andar de baixo, no 16º, o porteiro tinha ligado no 27º perguntando se tínhamos gostado do apartamento, o que evidentemente era só uma maneira dele certificar-se de que não estávamos loucos, trepando ou não tínhamos saltado pela sacada. No caminho do 27º para o 16º já estávamos brisados o suficiente para que o elevador subisse e descesse em câmera lenta. Tínhamos virado duas garrafas de cerveja e ainda tínhamos o resto do beck e outras tranqueiras conosco. O 16º era realmente menor, e além de tudo não tinha varanda, nem camas embutidas, ficamos num quarto pequeno, abri um pouco a janela para que entrasse alguma luz, enquanto a Tatiana foi telefonar para a portaria perguntando detalhes sobre o prédio e dizendo que iríamos tirar a medida de cada cômodo para ver se os moveis caberiam da maneira que a gente queria, o que não passava de lorota, o pior de tudo é que a voz dela já tava meio estranha, ela esquecia o que estava dizendo, voltava tudo de novo, até que desligou. No quarto eu tinha acendido o baseado e aberto outras duas garrafas de cerveja, ela estendeu um pano no chão e tirou um doce de morango de dentro da bolsa, tirou também um rádio, ligou na tomada, tinha trazido umas fitas com umas músicas hipongas insuportáveis, mas que naquela época curtíamos, talvez porque fosse novidade e tal. Não lembro quanto tempo ficamos nesse apartamento do 16º, lembro que acordei com batidas na porta e enquanto eu corria, abotoando a camisa, a Tatiana vestia a roupa apressada. Abri a porta e dei de cara com o sindico do prédio, não tava com uma cara nada boa e eu continuava viajando de beck, cerveja e vinho. Não lembro direito o que conversamos, só lembro que ele evitou entrar no apartamento, talvez por medo do que pudesse encontrar, nisso a Tatiana veio carregando as duas mochilas e com aqueles olhos vermelhos e cabelo bagunçado. – Já medimos tudo – ela disse com a maior naturalidade. Descemos e o sindico acompanhou a gente até a saída. O porteiro não estava mais lá, deixamos as chaves no balcão e fomos embora.
Na saída conferimos o relógio da praça central, passava das cinco, tínhamos ficado pelo menos três horas dentro do apartamento do 16º. Revistamos nossas bolsas, tava tudo revirado, de cabeça pra baixo, na pressa a Tatiana tinha colocado as nossas coisas de qualquer jeito e uma garrafa de vinho tinha vazado, molhando um livro do T.S Elliot que eu andava lendo. Sacudi o livro na calçada e olhei para a Tatiana que continuava com aqueles mesmos olhos brisados de sempre. - Onde você anotou as medidas? - ela perguntou de sacanagem, rimos e sem falar nada viramos a primeira à direita em direção à praia, apesar do desfalque de vinho ainda tínhamos maconha e cerveja suficientes pra baía de Guadalupe.