Puxando um pouco a enorme cortina branca de cetim, Judy deu uma espiada lá fora. O sol do meio-dia derretia três bonecos de neve e todo o gelo que se formara no encanamento, por isso as torneiras estavam abertas, gotejantes e barulhentas como despertadores do século passado.
Calçou suas botas de couro sintético e rodopiou pela porta a caminho da rua. Passeios vazios e cisnes na praça do correio, sorveterias fechadas e meninos com jornais debaixo dos braços procurando alguém que fosse comprar as noticias.
- Isso não é realmente, muito, muito triste? - perguntou o gato, deslizando do telhado a flutuar com um enorme guarda-chuva preto até que seus pequenos pés tocassem o chão.
- Do que você está falando? - perguntou Judy com um sorriso, desviando os olhos de dois cisnes que disputavam um pedaço de pão seco. Ficou a fitar o gato, com certa surpresa.
- Refiro-me àqueles bonecos de neve bem em frente a sua casa - explicou o gato enquanto fechava o guarda-chuva que agora servia como uma espécie de bengala.
- Quantos anos você tem? - Judy notou o modo como o gato caminhava, apoiando-se pelo guarda-chuva, com as costas curvadas, à maneira das pessoas de muita idade.
- Não sei exatamente. Depois dos sete parei de contar, a gente acaba cansando e além do mais isso não tem importância nenhuma.
- É verdade que os gatos têm sete vidas? - ela perguntou enquanto atirava uma moeda de cinco centavos no chafariz.
- Todos temos seis vidas, a sétima é suposição dos crentes religiosos, não sei se é verdade, pois ainda estou na terceira ou quarta, se não me falha a memória.
O gato continuou caminhando ao lado de Judy, que muito entretida com uma árvore que balançava sem vento, não prestava nenhuma atenção às estórias que ele contava sobre sua juventude e o tempo em que serviu na guerra.
- Para onde foram todas as pessoas? - Judy perguntou como se estivesse falando com uma terceira pessoa ao invés do gato.
- Malditos percevejos - vociferou o felino, batendo com a ponta do guarda-chuva em uma das pedras da calçada – Talvez tenham descido até a praia, nunca se sabe o que irão fazer assim que o sol aparece, a cidade vazia me agrada, nossos passos ecoam pela avenida, percebe?
- Não havia reparado, as ruas parecem maiores, em compensação, todas essas lojas de doces vazias não são grande coisa.
O gato então puxou do bolso da camisa um imenso relógio quadrado e certificou-se do tempo exato que fazia desde que se encontrara com Judy.
- Espera por alguém? - ela perguntou.
- Sim, sim, claro, espero por Doroty, ou melhor, ela espera por mim, creio que eu deva estar atrasado pelo menos uns quinze minutos - respondeu o gato enquanto reabria seu enorme guarda-chuva preto.
- Todos os relógios estão parados - Judy Garland comentou, olhando para os dois imensos ponteiros enferrujados e congelados no alto da igreja.
- Bem, até logo, vou indo nessa, preciso levar essa coisa comigo – falou apontando para uma mesa quadrangular de madeira na calçada do outro lado da rua.
- Mande lembranças para a menina - gritou Judy enquanto o gato subia puxando a mesa de 1x1 com uma corda tão fina e tão bonita e brilhante que Judy teve vontade de chorar.
- O seu nome é Doroty e ela não é bem uma menina - corrigiu o gato. Judy seguiu o seu caminho incerto pelas ruas vazias da Cidade do Sono e ouviu barulhos de sinos que dobravam sabe-se lá de onde e viu bondes estacionados, vermelhos reluzentes no pátio de manobras, subiu em um deles, fechou os olhos e ficou imaginado que percorria as ruas por onde viera, cada uma delas, até sua casa – e passou pelas sorveterias e pela biblioteca vazia, passou por casas com placas de aluga-se, passou por alamedas, avenidas e ruazinhas estreitas.