terça-feira, 23 de outubro de 2007

JUDITE

Nos encontramos pela primeira vez em um estacionamento vazio, bem ao lado de um galpão onde funcionava uma loja de roupas dessas redes grandes. Eu tinha ido até lá por acaso, conhecia o maluco que manobrava os carros e anotava as placas e ele me deixava ficar por lá recostado em um sofá cheio de furos e manchas, embaixo do sol. Então eu acendia um cigarro e ficava olhando enquanto as pessoas estacionavam seus carros. Era uma forma de distrair a cabeça numa época em que o meu salário mal dava pra pagar o aluguel da pensão imunda onde eu mocosava. Foi em um dia qualquer, já perto de anoitecer, eu tava lá distraído, jogado naquele sofá fétido, acabara de acender outro cigarro, quase não tinha nenhum carro estacionado, tava tudo quieto e o maluco lá na frente mascando chiclete e inclinando a cadeira para frente e para trás como se fosse uma espécie de tique nervoso. Olhei para um canto, perto de uma portinha onde ficava o banheiro, avistei uma pilha de estruturas plásticas disformes. Da distância em que eu estava seria mesmo difícil distinguir aquilo, o sol baixara e os muros altos impediam a entrada da iluminação elétrica das ruas. Levantei-me de onde eu estava e chegando bem perto, notei que se tratava de uma pilha de manequins quebrados, homens e mulheres trincados, amassados e com pedaços faltando. E foi exatamente no meio dessa pilha de aparente lixo que acabei encontrando Judite. Judite não tinha cabeça, exceto por isso, era uma boneca como as outras. Talvez até mais intelectual e misteriosa. Nessa noite levei Judite para casa, quero dizer, para o quarto da pensão em que eu morava. Coloquei-a ao lado da minha cama, de frente para a janela e abri as venezianas para que ela pudesse olhar o movimento lá fora.
- Sabe Judite – eu disse, enquanto tirava os sapatos – Você é uma menina de sorte.
Ela nada respondia, continuava com aquela mesma expressão indecifrável no corpo e os olhos que não tinha permaneciam mergulhados na vastidão além da janela.
- Aceita um cigarro – ofereci meio tímido, afinal os meus cigarros eram bem vagabundos e ela não parecia o tipo que fumava qualquer porcaria.
Não aceitou, mas não foi pela marca do cigarro, disse que tinha parado de fumar fazia pouco tempo, agora andava ocupada com um concurso para fazer parte do exército da salvação, eles não admitiam fumantes nas suas fileiras – ela explicou.
- Judite, você caiu do céu essa noite – encostei-me na cabeceira da cama e encarei seu corpo que me evitava. Fumei outros dois ou três cigarros até que finalmente pequei no sono.
Na manhã seguinte Judite continuava no mesmo lugar que eu tinha deixado, e continuava olhando através da janela como se quisesse voltar lá pra fora. Saí e comprei o jornal. Li as noticias em voz alta para ela. Pediu para que eu pulasse o caderno de economia, preferia o cotidiano dos astros e das estrelas, gostava de astrologia, tive que ler três vezes as previsões de cada signo, ela era gêmeos com ascendente em capricórnio.
- Judite, eu te amo – eu disse, fechando o jornal e então deitamos juntos pela primeira vez e contornamos aquele quadro de silêncio e vapor sufocante do meio dia com as notas dos nossos solos de gemidos e gargalhadas.
Judite era uma dama. Sua educação era para mim um encanto e ao mesmo tempo motivo de confusão. Pois se Judite não passava de uma boneca de plástico, um manequim sem cabeça, como pudera eu, nutrir tão nobres sentimentos por ela? A essas indagações todas, não encontrava resposta. Corria até a loja de roupas mais próxima e vestia-lhe com o que encontrava de melhor e mais caro. Comprei tinta e pintei um olho na ponta de cada seio para que ela pudesse enxergar. Continuava comprando o jornal e lia para ela o horóscopo todos os dias. Praticamente deixei de freqüentar o estacionamento.
O nosso relacionamento deve ter durado uns três meses ou talvez um pouco mais, foi o tempo da dona da pensão me mandar embora por falta de pagamento. Lembro que no dia em que sai da pensão, eu e Judite já não estávamos as mil maravilhas como antes, e embora fosse dolorido tanto para mim quanto para ela, senti que precisávamos nos separar definitivamente. E enquanto eu fechava o portão da pensão, carregando uma única mala que continha todos os meus bens materiais, olhei para cima, para a direção da janela do quarto da pensão em que ficara. E pela ultima vez, avistei Judite cujos seios pintados como se fossem dois grandes olhos, fitava-me com um brilho mágico e para minha maior surpresa, sorria e acenava, como se me desejasse toda a sorte do mundo.