quarta-feira, 18 de março de 2009

JESUS NÃO TEM DENTES NO PAÍS DOS BANGUELAS

Juntou as duas persianas e girou o trinco, fechando a janela pela nona vez naquele dia a fim de conter o barulho que vinha das ruas.
Era impossível ficar muito tempo fechado naquele calor insuportável, ainda assim parecia melhor do que a agitação do trânsito e a fumaça que subia de fora.
Retesou-se no sofá, antes de atirar para longe o par de tênis que acabara de descalçar. Arrancou a camiseta e jogando-a atrás da cabeça, improvisou um travesseiro, fechou os olhos e mesmo assim ainda era possível escutar a multidão que parecia agitar-se cada vez mais lá embaixo.
O apartamento não era novo, embora tivesse passado por uma reforma recente. Parecia confortável, tendo cômodos grandes o bastante para que ele e sua menina pudessem, de certa maneira, se perderem entre aquelas paredes brancas.
Não havia móveis ainda. Eram inquilinos novos, de um casamento novo, forjado longe das igrejas e dos cartórios, uma união feita sem a concessão das famílias, embora isso não fosse realmente necessário. Ele tinha 19 e estava desempregado, ela 17 e tinha conseguido um emprego na agência dos correios uma semana antes de se mudarem para lá.
Na sala, havia o sofá cinza repousado num canto e o aparelho de som ligado na parede oposta, um disco rodava em cima dele, Jesus não tem dentes no país dos banguelas – já tinha ouvido tantas vezes e seus tímpanos quase furaram de enjôo, aumentou o volume mesmo assim.
Entre uma música e outra era possível escutar o som das ruas, as sirenes ligadas das viaturas policiais e das ambulâncias. Três de cada, no final da penúltima música do lado A.

E quando enfim chegar a tua hora Não vão pôr flor ao pé da tua cova...

17h35min. Quinta-feira, sua menina saía mais cedo nesse dia, lembrou disso só quando ouviu os passos subindo a escada até o primeiro andar, depois a chave girou na fechadura. Outra vez fechou os olhos, uma ambulância passava lá fora e antes que um beijo quente tocasse o seu rosto, escutou também o som da agulha girando falso no fim do disco, e sentiu o sol bater perto do seu rosto quando a janela foi aberta. A claridade e o barulho tomaram conta da sala, a música tinha acabado. Cinco a quatro para as ambulâncias, hora de acordar.