sexta-feira, 23 de janeiro de 2009
CANTORES DE CHUVEIRO
No meu tempo não havia essa liberdade toda. Hoje as coisas estão bem diferentes, ainda existe muito preconceito, mas ninguém vai te meter uma bala na cabeça só porque você canta enquanto toma banho. Pergunta para as suas tias, como era na nossa época, tínhamos que guardar segredo sobre nossas músicas, se íamos para o banho, logo papai e mamãe colavam seus ouvidos na porta, e se ouvissem algo, alguma coisa que ao menos vagamente parecesse com uma música, então na hora em que você saia do banheiro era surra na certa, depois os professores vinham conversar com você, te aconselhavam, chamavam psicólogos, os pais querendo botar os filhos para fora de casa, as mães chorando, perguntando a elas mesmas, onde foi que erraram. A Kátia teve muitos problemas com isso, porque ela batia o pé e não estava nem ai para o que os outros achavam, cantava suas músicas e pronto, além de tudo, cantava alto, tão alto que a vizinhança toda escutava. O Pedrinho também não era fácil, foi mandado para um internato depois que papai escutou ele cantarolar algum tipo de ópera embaixo do chuveiro. Para a família era uma vergonha tremenda e tentavam esconder o caso a todo custo. Nas rodas de amigos era raro encontrar alguém que admitisse ser um cantor de banheiro. Eu me lembro da Kátia, do Pedrinho e do Adamastor, além do pessoal da associação, mas isso foi um tempo depois, quando a repressão policial era tanta que tínhamos que permanecer escondidos durante semanas, se algum vizinho ou conhecido telefonava denunciando a cantoria, o suspeito era logo autuado e levado pra delegacia, muitas vezes nunca mais era visto, novamente para a família era um misto de tristeza e alivio. Ninguém queria saber da gente. Éramos excomungados e impedidos de freqüentar os mesmos lugares que as outras pessoas, a gente normal, como se dizia, era a forma como se referiam àqueles que permaneciam em silêncio durante seus banhos, esses recebiam o titulo de respeitáveis cidadãos exemplares e nós éramos as escórias. Teve a época das passeatas, e ai a coisa começou a melhorar um pouco, ficamos mais organizados, a associação ganhava novos adeptos a cada dia, fazíamos comícios e caminhadas pelo centro da cidade, usávamos alto-falantes e faixas, exigíamos nossos direitos, mas a única coisa que a gente queria mesmo, era o mínimo de respeito. Então aquele senador de nome engraçado, nunca lembro direito o seu nome, Asdrúbal L. G. ou algo assim, ele foi eleito pelo voto popular e tudo, um monte de votos, e quando fez seu primeiro pronunciamento, declarou abertamente ser um cantor de banheiro desde os dez anos de idade. Para repúdio dos seus colegas de trabalho. Asdrúbal foi expulso do cargo que ocupava e lá fora, as ruas pegavam fogo. Organizamos barricadas, pegamos o que a gente tinha a mão, pedras, pedaços de pau, garrafas, barras de ferro e fomos à luta, a polícia e grande parte dos ditos cidadãos exemplares, pessoas cujas vidas eram um exemplo a ser seguido estavam nos esperando, foi um doloroso e sangrento combate, lutávamos bravamente, muitos tombavam e jaziam ali mesmo, do nosso lado, bem no meio da rua. Mas nós não desistíamos, continuávamos atirando nossas pedras na direção do inimigo, muitos dos que estavam do outro lado, percebendo nossa determinação, talvez tivessem percebido também que nossa luta era uma luta verdadeira, não estávamos ali para brincadeira, daríamos nossas vidas pela causa, se fosse preciso, muitos já o tinham feito, então essas pessoas começaram a chegar, de todos os lugares, eram pessoas pacíficas e conseguiam enxergar além de todas aquelas coisas que a mídia mostrava. A mídia sempre deturpou nossa imagem, no início simplesmente nos ignorava, não existíamos para ela, depois, quando ficamos mais fortes e era praticamente impossível nos ignorar, fomos alvos de mentiras sujas tantas e tantas vezes que estávamos dispostos a botar fogo em cada redação de jornal que encontrássemos pela frente. A batalha nas ruas durou cerca de vinte dias, o governo, vendo que a situação ficava a cada dia mais fora do seu controle, baixou um decreto emergencial, devolvendo os nossos direitos, direitos que sempre tivéramos antes de termos nos declarado publicamente cantores de banheiro. O presidente veio pessoalmente de helicóptero conversar com a gente, os papéis assinados foram mostrados como garantia. A partir de então podíamos andar tranquilamente pelas ruas, pois já não era proibido cantar debaixo do chuveiro. A repressão policial e o preconceito nunca acabaram. Nos acusam de doentes, mas a doença é deles, e nunca admitiram isso. Agora temos nossos direitos e os tempos são favoráveis para que pessoas que cantam enquanto tomam banho possam conviver naturalmente com as pessoas que permanecem caladas, tem muita gente da associação que ceticamente pensa estar longe desse dia chegar, às vezes eu acredito nelas, mas sinceramente prefiro acreditar que estejamos evoluindo um pouco mais rápido do que esses passos de tartaruga que a custa de tanto suor e sangue demos de nós mesmos, todos os dias.