quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

A TECNOLOGIA CIBERNÉTICA OU O SOPRO DIVINO DOS INFERNOS

Esticou o braço cuja mão segurava uma minúscula câmera e bateu três fotos do próprio rosto num perfil inexato – metido num ponto de ônibus qualquer dentro duma noite nublada e muito além do horizonte de qualquer outra pessoa do mundo. Acontece que já fazia algum tempo desde que comprara esse programa, era a última palavra em tecnologia cibernética, você batia fotos do próprio rosto – geralmente era isso o que as pessoas faziam – e com esse programa desenvolvido você podia copiar e colar seu rosto em algum astro de cinema interpretando o seu papel favorito dentro do seu filme preferido ou então posar de estrela do rock, um boxeador imbatível, qualquer merda que fosse.
E quando o ônibus passou, ele nem viu – nem reparou também que esse talvez fosse o último, de modo que ficou esperando algum tempo, bateu outras tantas fotos, alguma dessas fotos pensou consigo mesmo – poderei ampliar e imprimir um novo pôster para a parede do quarto – já tinha dezenas deles e isso não era nenhum exagero, praticamente todas as pessoas possuíam suas próprias fotografias e assistiam filmes cujas estrelas principais invariavelmente exibiam o mesmo rosto daqueles que as espreitavam dentro de seus quartos gelados. Isso era fácil e prático, em questão de minutos seu rosto e seus gestos poderiam fazer parte do corpo daquele político num importante discurso sobre ternos & gravatas ou então fazendo misérias com uma bola de basquete ou vendendo churrasqueiras dentro dum comercial ensolarado. Na verdade já fazia algum tempo que ele não via outro rosto que não fosse o seu no corpo de uma celebridade ou mesmo de uma pessoa completamente desconhecida e acontece que tamanha febre já roubara emprego de muita gente – para quê contratar atores famosos se os seus rostos acabam sendo trocados pelos rostos das pessoas que as assistem? – perguntavam os diretores - Para quê? – perguntavam os assessores dos políticos, dos artistas e dos esportistas dentro de um debate num certo programa infantil cuja principal brincadeira era tentar descobrir quantos rostos havia por trás daqueles tantos outros rostos, de quem na verdade era a fama? E a grana? Era um longo debate e as pessoas nas ruas trajavam camisetas com suas faces rosadas estampadas e a voz que cantava nos seus fones de ouvido era a mesma voz que escutavam sempre que falavam embora quase nunca mais fosse preciso dizer algo realmente. A tecnologia mudara o mundo e junto com o mundo, mudara também as pessoas, ninguém tinha mais tempo para o outro e as filas para que pudessem examinar os próprios umbigos viravam as esquinas das clinicas médicas especializadas em plásticas cibernéticas e técnicas de fotoshop de última geração. Nosso personagem caminhava de volta para o seu quarto, tinha desistido de esperar pelo ônibus – as ruas estavam vazias e silenciosas como a morte, um gato subiu num telhado e um tanto admirado parou fitando de longe as luzes das janelas dos prédios denunciando milhões de anônimos famosos e a apoteose dos flashes instantâneos, todo mundo era um pouco feliz, dentro daquela realidade de areia de suas casas seguras em forma de redomas protegidas 24 horas do vento gélido que ainda insistia em soprar da boca de um deus que muitos geerks, nerds, cristão e ateus agora insistiam em denominar de sopro divino dos infernos – ou o diabo em forma de vento disposta à destruir nossos castelos.
Uma imensa bobagem.
E o gato distraiu-se com um rato e nem viu o vulto cabisbaixo e pequeno do insano herói anônimo, político e esportista genial que numa cópia rasurada lá embaixo se arrastava.