quinta-feira, 23 de outubro de 2008
NO CAMINHO DE CONCEPCIÓN - VI
Tínhamos cruzado o Vale de Santa Cruz em menos de oito horas, percurso que normalmente fazíamos na metade desse tempo. Parte do nosso atraso deveu-se à indisposição que Helena sentira durante toda a viagem, de forma que éramos obrigados a parar de meia em meia hora para que ela respirasse um pouco de ar fresco, enquanto eu e Ramirez revirávamos nosso porta-malas à procura dos comprimidos que a Helena jurara que tinha visto. Estávamos agora embaixo de uma ponte, um rio imenso, cujo nome desconhecia, passava silencioso perto dos nossos pés e o carro adormecia lá em cima, na beira da estrada, acendemos uma fogueira e ficamos perto uns dos outros, nos sentíamos ligeiramente tristes nesse dia, pois o rádio do carro anunciara o assassinato de centenas de focas uma semana antes, não muito longe de onde estávamos agora. A Helena encostou a cabeça no meu braço enquanto o Ramirez tinha descido um pouco às margens do rio com uma espécie de vara improvisada jurando que voltaria trazendo peixes. Milhares de peixes, ele disse. Eu não sabia direito o motivo, talvez eu nunca venha saber, mas esse tipo de notícia como a matança das focas, me deixava tremendamente pra baixo, o dia perdera completamente qualquer coisa de poético que poderia ter e até mesmo a viagem já não era lá grande coisa, estávamos a caminho de Tropez, direto para a casa de um peruano maluco que a Helena conhecia. Permanecemos calados por muito tempo, olhando para o fogo crepitante e escutando, vez ou outra, um berro do Ramirez lá embaixo, provavelmente tinha apanhado alguma coisa. A Helena parecia que estava dormindo, com a cabeça apoiada no meu braço, encarei seus cabelos castanhos por um momento, estavam sujos como nossos rostos, mas tinham uma beleza peculiar, talvez fosse a forma como brilhavam agora, tive cuidado para não mexer o braço, ela não era necessariamente bonita, nem atraente, nada desse tipo, talvez fosse uns vinte anos mais velha do que eu e o Ramirez, mas tínhamos um respeito enorme por aquela mulher, sabíamos das estórias que ela vivenciara ao longo de sua vida, até ali, todas as dificuldades, Helena era especial para todos que a conheciam, possuía um coração enorme que resultava numa vontade de ajudar o mundo continuamente, ela não dava uma trégua, estava sempre pronta, sempre disposta, era o tipo de pessoa que não vacilava nunca. Escutei outro berro de Ramirez vindo lá de baixo, no fundo eu sabia que ele não tinha pegado peixe nenhum, estava apenas se divertindo um pouco, fazia um calor danado e já tínhamos pulado naquelas águas minutos antes, agora o vento anunciava chuva. Dormimos embaixo daquela velha ponte de madeira enrolados nuns pedaços de papelão. Não tínhamos encontrado nenhum comprimido no porta-malas, Ramirez passou todo o resto da viagem perguntando por eles e a Helena sorria fingindo que não escutava. Não voltamos a ligar o rádio, por motivos óbvios, não queríamos que novas notícias de um mundo doente atordoassem nossas cabeças que rolavam por aquela estrada sinuosa até Tropez. Ainda tínhamos cerca de vinte horas pela frente. Ramirez deu um outro berro. A Helena perguntou pelos peixes, caímos todos na risada. Não tínhamos dinheiro, nem muito juízo, mas por um minuto conseguíramos nos esquecer das focas.