Madame Leblanchet nunca fora uma sumidade quando o assunto era cálculo matemático, fosse lá de qualquer espécie, sabia calcular, por exemplo, quantos dias faltavam para que, enfim, pudesse voltar ao salão de cabeleireiros da cidade, coisa que fazia a cada dois meses, no máximo, sabia também calcular, quantos litros de cerveja deixavam Eduardo Vinshester, seu último e único caso, caindo de bêbado pelos cantos, mas uma coisa ninguém podia negar, Madame Leblanchet sabia com a exatidão de nenhum outro matemático, quantas aves tinha no seu quintal, e não importava que matassem sete ou oito desses bichos para o jantar, não importava que suas crianças (todas loucas e sujas) trocassem uma ou duas cabeças da sua criação por... bolinhas de gude espanholas ou pipas chinesas, ela não passava uma noite de seu tranqüilo sono, sem ter a certeza exata de quantos bichos dormiam lá fora, empoleirados no imenso galinheiro que seu finado marido construíra. Acontece que, Eduardo Vinshester, vindo de uma viagem a convite do Rei, até as terras do novo continente, terras recém invadidas pelos portugueses, voltou com o estranho costume de assar carne numa geringonça encardida que obviamente chamava de assadeira, e enquanto ele deixava aquelas carnes todas assando, batucava numa espécie de circunferência de madeira, revestida em couro de boi. Eduardo Vinshester passou a usar a tal assadeira todo santo dia, chamava os vizinhos e distribuía igualmente carne, vinho com limão e aquelas estranhas circunferências de madeira para cada um deles. Batucavam e batucavam durante tardes e noites inteiras ao que Madame Leblanchet trancando-se no seu quarto, chorava e seu choro produzia águas como um dilúvio. Numa ocasião, enquanto Eduardo brindava com seus amigos, Madame foi até o galinheiro fazer a contagem das aves, depois de muito tempo, contando, recontando e recorrendo aos seus cadernos de anotações, notou que faltava uma ave entre as tantas que possuía, não ligava para o fato de matarem uma dúzia que fosse, para o caso de visitas, ou que seus filhos (crianças loucas e sujas, já lhes disse?) trocassem algumas por um punhado de tranqueiras que mal brincavam. O fato é que Madame Leblanchet possuía seis faisões africanos e dentre esses, havia um, o mais velhos de todos, por qual ela tinha verdadeira adoração, ninguém tinha autorização para pegar nenhuma dessas aves, fosse qual fosse a ocasião, era ordem expressa, que com os faisões da Madame não se mexia. Bastou isso (e não era o bastante?) para que ela saísse de dentro daquele galinheiro soltando fumaça pelo nariz, sabia que Eduardo preferia assar carne bovina nas festas que vinha promovendo, mas não o conhecia o suficiente para ter certeza de que ele não iria tocar nas suas aves.
O final exato dessa estória é por mim desconhecido, pois viajei na manhã seguinte, a mando da própria madame, até uma fazenda de colonos Italianos nas terras suíças. O que contam é que Madame Leblanchet encontrou Eduardo e três de seus amigos, todos visivelmente bêbados e tontos, depenando uma imensa ave de linhagem claramente africana. Diz-se que, depois de alterada discussão, que terminou com berros e objetos atirados dos dois lados, Eduardo nunca mais pisou em propriedade alguma que tivesse Leblanchet no seu nome. Madame ainda proibiu que seus filhos tocassem nas tais circunferências de madeira, ordenando, logo em seguida, que fossem todas queimadas, junto com a tal assadeira, e jurou, e dizem que fez isso em voz alta e bem audível, para que todos pudessem escutar suas palavras, jamais pisar em terras cujas leis fossem regidas pela corte portuguesa. Eduardo, ao que parece, pegou o primeiro navio a caminho do novo continente e por lá ficou, dizem até que anda bem engraçado, relaxado e esbanjando uma considerável barriga de cerveja pelas ruas de paralelepípedo de uma vila, cujos escravos fazem extraordinárias batucadas noite a dentro.