sexta-feira, 23 de novembro de 2007

O HOMEM QUE ACORDOU SEM OS PÉS

Todos os dias como era de costume, levava os pés para passearem pelos mesmos lugares. E eram lugares horríveis e cheios de tédio, escritórios de repartições publicas com enormes pilhas de papeis amarelados, amontoados, encobrindo as pessoas que por detrás dessas enormes pilhas de papel, datilografavam com máquinas de escrever tão antigas, cujas teclas faziam sucessivos e insuportáveis TEC TEC TEC como se não fosse nunca ter fim. E depois de terminado o dia, voltava com eles outra vez, ele e os dois pés, pelo mesmo caminho e vinham e subiam e viravam a rua, contornavam os mesmos muros de todas aquelas mesmas alamedas sinistras, sempre os três, sozinhos. Foram tempos realmente tristes para os dois pobres pés. Confinados dentro de apertados sapatos sociais aristocráticos e engraxados que iam e vinham, vinham e iam, no entanto não chegavam a lugar nenhum.
Foi no dia cinco de julho do ano passado que ouvi a noticia em um canal de televisão, tava ele lá, com a cara toda assustada e amarrotada, como quem acabara de acordar, respondendo às perguntas da repórter do cabelo tigelinha. Augusto Primeiro, o homem que tinha acordado sem o seu par de pés. E a entrevista foi longa, fizeram uma mesa redonda, com ele no centro, escorado em duas enfermeiras obesas e que fumavam um cigarro atrás do outro, respondia a todas as perguntas com atenção, embora estivesse mesmo muito assustado e no final de cada resposta, dirigia-se para a câmera e pergunta pelos seus pés, como se estivesse falando com eles através do vidro televisivo, e talvez estivesse. No final do programa aconteceu um debate, discutiram o drama do homem cuja vida mudara do dia para a noite, uma longa discussão, cujos participantes exautaram seus ânimos a ponto dos seus pescoços retorcerem-se por sobre a mesa.
Chamaram pelos representantes das principais tendências ideológicas e todos eles responderam com estupefação e sensacionalismo aos telefonemas que lhes tiravam de suas camas no meio da noite. O presidente e o capitão da seleção de futebol também foram ouvidos. A policia foi acionada. Homens vestidos de Sherlock Holmes circulavam pela cidade com lupas imensas à procura dos pés de Augusto Primeiro. Nos dois dias seguintes não se falava em outra coisa, até que na manhã do dia sete de julho, um jornal sensacionalista publicou a foto de uma socialite, que saindo bêbada de uma boate esqueceu o vestido em algum lugar qualquer lá de dentro e essas fotos agora eram o motivo pelo qual as pessoas saiam às ruas naquela manhã de domingo e filas realmente grandes formavam-se em torno dos jornaleiros.
No entanto foi ontem, no finzinho da tarde, que os vi. Os dois pés estavam lá no píer de uma praia da Grécia. De óculos escuros, bebendo suco de abacaxi com canudinho. Lembrei-me de Augusto Primeiro e imediatamente pensei em ligar para a redação de algum jornal ou de algum canal de televisão, mas lembrei-me de que estavam todos ocupados agora, cobrindo a corrida com sacos que tradicionalmente acontecia todos os anos no dia de todos os santos. E mais do que isso - pensei que provavelmente, aqueles dois pés agora tinham vida própria e de qualquer maneira não fariam muita falta para alguém como Augusto Primeiro.