sexta-feira, 7 de setembro de 2007

KALISHA

Na província de Wasla, entre as cidades de Lucrecia e Bratislava, cruza um imenso e silencioso rio de águas escuras, conhecido como o Rio de Wasla. Com a chegada do verão, porém, seu volume cai cerca de dois terços, deixando visíveis, enormes pedras que antes ficavam encobertas por suas águas cinzentas.
A estrada que liga Lucrecia à Bratislava, serpenteia ao lado de montanhas altíssimas, cujos picos, mesmo com a chegada do verão, permanecem ainda encobertos pela neve. Há um determinado ponto nessa estrada, depois de uma curva sinuosa e cheia de placas de advertência, onde a estrada eleva-se cerca de seis metros acima do chão. Lá embaixo o Rio de Wasla corre, agora barulhento, entre as pedras. O sol do verão eleva-se no céu azul, anunciando um entardecer bonito como há muito não se via nessa região.
Kalisha está caída junto às pedras, lá embaixo. São cinco e quinze da tarde. Pássaros cantam e de vez em quando um carro passa sobre a ponte onde ela estivera antes. Ficou a tarde inteira lá no alto, olhando para as águas e as pedras do rio. Escondida pela grama alta e por flores minúsculas que só agora, dois meses depois de terminada a primavera, começavam a dar sinal de vida, uma bicicleta vermelha, com um cesto branco na frente, a bicicleta que era de sua prima. Kalisha tinha ido até a casa dela essa manhã, pedira a bicicleta emprestada, dizendo que iria até a biblioteca apanhar uns livros.
Já fazia um tempo que Kalisha desiludira-se com tudo. Tinha dezenove anos, pouca idade para alguém desistir da vida, talvez você pense. Mas eu a conheci bem o suficiente para dizer-lhe, que embora Kalisha tivesse apenas dezenove anos, era suficientemente madura para perceber o tamanho da enrascada na qual estava se metendo. Trabalhara desde os 17 anos na loja de materiais de construção de um tio, era caixa, ganhava o suficiente para comprar livros e discos, passava horas em frente a televisão assistindo documentários sobre as guerras e misérias do mundo. Vivia com a mãe em uma casa grande, afastada do burburinho da Bratislava, não tinha irmãos, não conhecera seu pai, jamais tivera um grande amor ou um grande sonho, não era o tipo de pessoa que vivia rodeada de amigos, embora não lhe faltasse amizades. O homem é a miséria do homem, escreveu Kalisha, aos 14 anos em uma redação da escola.
Desde os 10 anos que ela rabiscava poemas, o tom pessimista dos seus textos era um reflexo de tudo o que ela percebia a medida em que conhecia cada vez mais o mundo e as pessoas que nele viviam. Houve uma época, entretanto, que Kalisha ignorara todas essas coisas, quando criança, divertia-se com outras meninas da sua idade, nas margens do Rio de Wasla. Passavam o inverno inteiro fazendo planos de piqueniques e pequenas viagens de bicicleta. Kalisha sempre fora uma criança como todas as outras, sua mãe, vezes ou outras, ausentara-se um pouco, vivia de casos com homens que Kalisha jamais conhecera. A menina, desde muito pequena, já sabia de tudo, entendia as coisas, e chegava muitas vezes a preferir ficar sozinha em casa durante todo o final de semana do que na companhia da mãe. Era nessas ocasiões em que ela chamava outras meninas e juntas passavam as tardes fazendo bolo e brincando no quintal dos fundos, muitas vezes, coberto de neve.
Quando tinha quatro anos, Kalisha já sabia escrever o próprio nome, com três, andava de bicicleta e imitava personagens de desenhos animados. A mãe olhava e sorria, tios e tias tinham por ela um grande carinho. Quando veio ao mundo Kalisha foi rodeada de presentes e mimos, amigos e familiares de todas as partes vieram para ver a menina, é dessa época uma foto de Kalisha nos braços da mãe em frente à casa onde moravam, uma outra foto depois, com todos os familiares reunidos, a mãe ao centro, com um sorriso incontido, segurando a menina nos braços. Uma cópia dessa foto foi mandada para toda a equipe médica do Hospital Estadual em Lucrecia, onde Kalisha nascera, dezenove anos atrás.