Aconteceu no pátio do colégio pela primeira vez, foi na hora do intervalo, estava lá parado, bem no meio da quadra e de repente começou à ouvir aquelas vozes todas, olhou para os lados, mas elas não pareciam vir de parte alguma, ficou algum tempo parado, tomado de imenso espanto, as vozes continuavam, inteligíveis e tagarelas, olhou para o alto, só um dirigível passava quase tocando as nuvens. Então olhou para baixo, na direção dos pés, era de lá que vinham aquelas vozes todas, atordoado ainda, pensou tratar-se de formigas falantes, mas já não era bobo o bastante para acreditar por muito tempo em algo assim. Talvez fosse impressão ou talvez tivesse sido o lanche com sardinha que comera pouco antes. Continuou andando, do outro lado da quadra encontrou outros moleques, conversaram assuntos que moleques de dez anos conversam, deu risada, contou mentiras, ouviu bobagens, até que tocou o sinal. Voltou para a sala de aula. Matemática. Detestava matemática. Preguiçosamente abriu o caderno. Por um momento esquecera as vozes que ainda à pouco tinha ouvido no pátio.
Na volta para casa, enquanto passava por uma rua tranqüila eis que começou à escutar novamente aquelas vozes todas. Parou por um minuto. Como antes, vinham lá de baixo. Correu em disparada até sua casa e enquanto corria mais nada escutava, só o barulho dos carros, do vento, dos aviões. Chegou em casa ofegante e aliviado, fechou a porta, já estava entrando na cozinha, quando as vozes começaram novamente com aquele blá blá blá incessante, deu meia volta, não queria que sua mãe escutasse. Subiu até o quarto correndo, pulando os degraus de dois em dois. Fechou-se no quarto, elas continuavam, lá embaixo, na direção dos pés, sentou-se na cama assustado, arrancou um tênis, depois o outro, espiou bem dentro dos dois, não tinha nada lá dentro e o pior, as vozes continuavam, apoiou o pé direito com as mãos e encostou perto do ouvido, nada. As vozes vinham do outro pé, então encostou o pé esquerdo perto do ouvido e lá estavam elas, aquelas vozes tagarelas, falando, falando, falando, coisas que ele não entendia. Tentou localiza-las melhor, parecia que vinham da sola do pé, depois descobriu que elas vinham do dedão, até passarem para o dedo seguinte, e depois para o outro, depois faziam o caminho inverso, voltavam. Ficou com medo. Medo que seus pais descobrissem. Medo que o internassem ou que chamassem a polícia ou o exército. Colocou quatro meias em cada pé, ainda era possível escutar as vozes, mas só um pouquinho, quase nada se ouvia. Calçou o par de tênis novamente e desceu para o almoço. De noite, na hora do banho, lá estavam elas e dessa vez pareciam mais altas, tanto que conseguia entender algumas coisas que elas diziam, nem o barulho do chuveiro era mais alto, aumentou o jato, as vozes também aumentaram o volume, começou à cantar, assobiar, fazer barulho. Até que sua mãe veio a porta perguntar que barulho era aquele. Nada, ele respondeu. Não era nada. E as vozes continuavam, cada vez mais altas. Sua mãe perguntou que vozes eram aquelas. Nada, ele repetiu. Não era nada. Então as vozes ficaram tão altas, que não pôde mais ocultar o segredo, falou sobre as vozes para os seus pais, mostrou o pé esquerdo para eles, as vozes estavam todas lá, graves, agudas, falantes. Na manhã seguinte levaram o menino ao médico, ele ficou sentado em uma cadeira macia, a mãe ao seu lado, o pai esperava na recepção. O médico parecendo muito gentil e educado, pediu para examinar-lhe o pé, ele então descalçou o tênis, meio à contra-gosto, a mãe, ao mesmo tempo em que tentava tranqüiliza-lo tentava também tranqüilizar-se. O médico então, chegou bem perto com o estetoscópio, ficou algum tempo examinando, as vozes estavam um pouco mais baixas, mas ainda assim era possível escuta-las – Ouçam – o médico enfim exclamou – Edith Piaf, milhares delas cantando ao mesmo tempo – o médico parecia levemente emocionado. A mãe encostou a cabeça perto do pé esquerdo do menino – É verdade – empolgou-se e saiu correndo para chamar o pai que esperava no estacionamento. O médico imediatamente telefonou para as enfermeiras, os plantonistas, os seguranças, as recepcionistas, as faxineiras também chegaram correndo, trazendo ainda rodos, vassouras e panos. Logo a sala estava lotada de gente, todos querendo escutar aquelas vozes todas. Foram servidos chá com bolachas, ficaram algum tempo ouvindo as músicas misturadas umas com as outras, então começaram à conversar, conversar, conversar, e por fim esqueceram o menino sentado na cadeira macia. Ele ficou escutando, as vozes daquela pequena multidão que preenchia o consultório misturada as vozes que saiam dos dedos do seu pé esquerdo e sem que ninguém desse conta, calçou novamente o tênis, levantou da cadeira e enquanto todos conversavam sobre tantas coisas ao mesmo tempo saiu caminhando pela rua ao som de milhares de carros, milhares de aviões, sonhos e frustrações misturados, milhares de planos, pães e piões, milhares de Ediths Piafs.