quarta-feira, 18 de junho de 2008

VALIUM

Era um sonho frequente, primeiro eu sentia como se estivesse levitando, meus pés pendiam num espaço desconhecido e minhas mãos tateavam, procurando um apoio sem, no entanto, encontra-lo. Gradativamente, tomado de coragem, abria os olhos e me encontrava no mesmo lugar de outras vezes, um imenso espaço sideral, cercado por milhares de planetas estranhos e imensos pedaços de pedra que passavam por mim, numa velocidade assustadora. O início do sonho era como se fosse um pesadelo, pois era colossal o medo que eu sentia daquela vastidão toda que me cercava. Então vinha a segunda parte em que eu enxergava não muito distante, aquele planeta azul em forma de comprimido, ele ficava girando fora de órbita, numa galáxia desordenada com inúmeros outros planetas, que eram sempre os mesmos também. Como um imã, me sentia atraído por ele e conforme eu adentrava na sua atmosfera, milhares de minúsculas partículas líquidas azuladas tocavam o meu corpo. Seu solo não era quente nem gelado, era arenoso e eu gostava de ficar nele, tocava sua areia azul com a ponta dos dedos e sentia o gosto do comprimido na minha boca, acariciava sua superfície com um cuidado terno e era mais ou menos nessa hora que ela chegava, era uma menina, uma menina que devia ter uns 17 anos, seu nome era Bibi e tinha grandes olhos brilhantes e falava sem parar, vivia dizendo coisas sobre o comprimido de Valium gigante, esse planeta que visitávamos quase sempre. Bibi tinha a língua azul e talvez a minha também fosse azul, dentro desses sonhos a gente nunca sabe.
Certa vez, num sonho, Bibi chegou toda estabanada com suas pernas de gelatina, derrubando um vaso, cuja terra misturou-se ao pó azul do planeta Valium. Não tinha flor nem nada, era só terra, terra adubada como ela mesma contou. Então, num sonho seguinte, cerca de duas semanas depois, notei que no meio daquela terra que Bibi derramara, agora crescia uma plantinha pequena, quase imperceptível. Quando ela chegou, contei a novidade; flutuamos até lá, tocando nossos dedos na areia azulada e lambendo-os em seguida.
As coisas aconteciam como se estivéssemos em câmera lenta, Bibi chegou bem perto do monte de terra, o vazo ainda estava ali do lado, mexeu na sua mochila e lá de dentro tirou uma lupa de gelo e então pudemos ver que a planta que brotava tinha um tom levemente azulado nas folhas e o caule parecia feito de algum material metálico.
Lembro que, passadas quatro noites, eu e Bibi já estávamos nos alimentando das folhas daquela planta, que tinha crescido tanto a ponto de Bibi escalar seus galhos de metal gélido e gritar lá de cima, atirando quase na minha cabeça um comprimido azulado de 10 miligramas que imediatamente dissolvi em água e esquentei num potinho de plástico e pateticamente tentei sugar com uma seringa, mas só consegui uma mistura estúpida de Valium com plástico derretido. No sonho seguinte, escalei a árvore na qual a tal planta se transformara, e lá de cima, do último galho, depois de ter ingerido cerca de quarenta comprimidos, enxerguei Bibi caída perto do vazo, com a testa cortada e um cheiro de morte. Desci despencando, desesperado e quando cheguei lá embaixo, Bibi já tinha derretido.
De que matéria éramos feitos nesses sonhos? Não sei. Quem era Bibi? O que pretendíamos ali? Como ela tinha ido embora? Nenhuma dessas perguntas parecia ter uma resposta. E quando despertei desse último sonho sentia-me horrível e gasto como se o meu espírito não passasse de fumaça de cigarro. Deixei os comprimidos azuis de lado, não visitei mais o planeta Valium e nunca mais encontrei Bibi, mesmo em outros sonhos. A única coisa ruim, e talvez isso valha por todo o resto, é que nunca mais acordei com aquela sensação de ter visitado o paraíso outra vez.